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“Transparência”: A Era do Voyerismo

Existe um determinado ambiente – que a tem tornado cada vez menos diversificada – que se vem estendendo a vários domínios da indústria mediática e televisiva. Predominam os voyerismos. Desde o inaugural, embora muito “virgem” para o panorama actual, Big Brother que se generalizaram, e “sofisticaram”, todo um naipe de “conteúdos” que, apesar de serem bem preparados, nos querem fazer crer que mostram uma suposta realidade humana. Existe uma pretensão: parece que, nesta época de “transparência” e de rara confidencialidade, nos “temos” de “observar”, continuamente, uns aos outros. Experienciamos, através do visionamento de uma série de “produtos” – que, com pequenas variações, parecem, de facto, montados em cadeia -, a ilusão de entrarmos em contacto com o ser humano como ele “realmente” é. Dando-nos, assim, uma, já não rara, oportunidade para podermos fazer todo o tipo de comentários sobre os intervenientes. Contudo: em circunstâncias bastante condicionadas. O Homem, naturalmente, já representa. Ele é, de forma inconsciente ou consciente, uma espécie de avatar – para utilizar, aqui, o jargão em voga – ambulante. Mas para poder “vencer” e não ser expulso: põe-se bem controlado. Bem comportado. De certa forma: “aprisionado”. Limitado por directrizes internas. Por um guião meticulosamente projectado para cada uma das emissões. Pelas múltiplas câmaras que são estrategicamente colocadas nos vários cantos da “casa”, da “quinta” ou do “bar”. Através da “reality tv” nunca sabemos, ao certo, onde pára a verdade. Cada um dos, meticulosamente escolhidos, concorrentes utiliza um tipo de imagem – até cair – que deseja projectar para o “exterior”. É competição que se extrema. Que entrou, posteriormente, noutros campos “comunicacionais”. As redes sociais amplificaram este novo género de controle civilizacional. E, talvez por isso, multiplicam-se os perfis que nem sempre correspondem à “realidade” de cada um dos usuários. A espionagem global arranja, deste modo, alguns anti- corpos. Mas se nos confiscamos, agora mais afincadamente, uns aos outros: porque deixaria um estado, ou uma qualquer empresa do sector tecnológico, de o fazer? Foi este o golpe de génio. Dando-nos as “armas” para que nos posicionemos no mesmo nível de comportamento social: não nos poderemos queixar de práticas “superiores” de intrusão. Se “eles” o fazem: nós também. Se nós fazemos: “eles” abusam.


O “Selfie”: Do Reino do “Eu” ao Império do Nada ( Versão para o Jornal i)

Publicações e debates, sobre a “sociedade da informação”, “atrasaram-se” em investigação. Apesar da melhoria no último ano, devido ao caso Snowden , a “discussão” foi conduzida como uma “veneração”. Imperava o “guru da comunicação”: o “optimismo” sobre um paradigma “paradisíaco” que a tecnologia, por si, alcançaria. Parecia, por vezes, uma “seita” em construção. O “panfleto” era quase sempre o mesmo: “o mercado dos gadgets conduz- nos a uma democratização da mensagem”. Mantra que foi emulado, nas redes sociais, por um usuário mais absorvido por questões económicas nacionais. Compreende-se. Mas inúmeros factores, ignorados pelo cidadão na veloz troca de informação, estão a remodelar o estilo de vida com uma rapidez difícil de descortinar pelos média, pela filosofia ou pela sociologia contemporânea. Existem exemplos. Como os livros de Nicholas Carr ou de Evgeny Morozov. Mas é pouco. Nada disto é novo: o século XIX, com a revolução industrial, assistiu a crença similar. Que se desvaneceu quando se viram as consequências que a tecnologia também trouxe: poluição, duas guerras mundiais ou as bombas de Hiroshima e Nagasaki. O determinismo científico esquece, facilmente, que o homem não é só Sapiens: é Demens. A “democracia digital”, possibilitadora da difusão da mensagem por parte dos cidadãos, é real. Mas a questão não pode ser colocada, apenas, desta forma. Se se pretende, apenas, a inclusão: pouco é questionado subjectivamente. Porque, contra a narrativa do mercado tecnológico, opiniões divergentes são olhadas de soslaio. E “se pouco é questionado” relativamente ao paradigma comunicacional: não estamos numa democracia social. Mas num igualitarismo de tipo novo: transnacional. Questões que podem ser colocadas não são novas. Foram “esquecidas” neste século. Mas debatidas em obras de filosofia no século XX. O Estaleiro Cultural Velha- a- Branca, de Braga, com um debate conduzido por Inês Viseu, Hugo Moura e Daniel Camacho no passado dia dois de Maio, evitou o que referi anteriormente. Abordou a história da fotografia para questionar a banalização da cultura da imagem no discurso colectivo e a tendência do momento: o selfie. “Pormenor” que se transcende ao atravessar o espectro informativo: o rápido post “noticioso”, o vídeo de “cinco minutos” para que tenha “mais visualizações” ou a “adolescência” de muito do “jornalismo- cidadão”. Interessa a rápida exposição: o “eu” é a mensagem. O que arrasta consequências ao nível do pensamento contemporâneo. “Se toda a mensagem vale o mesmo”: que caminho seguir num cenário de crise económica e social? Precisamos de interpretação. Nada disto traria problemas se não ofuscasse a especialização e a qualidade que a costuma acompanhar. O que passa a “interessar” não é, exactamente, a “cultura”. Mas a inclusão de “toda a gente” no discurso cultural. Mas talvez seja cedo. Existem épocas de retracção. Nada é certo. Nada é eterno. Precisamos, por vezes, de parar: assistir sem “fotografar”. Pensar. “Fotografar” a seguir.


O “Selfie”: Do Reino do “Eu” ao Império do Nada

Uma grande parte dos jornais, das publicações que não são académicas – e estas são cada vez menos -, dos sítios na internet e dos debates internacionais, no que respeita à perpétua discussão que é feita, há anos, sobre a construção da desejada “sociedade do conhecimento” e da “sociedade da informação”, “atrasaram-se”, a meu ver, em termos de um trabalho analitico e de investigação. Ou seja: evitaram uma necessária “dissecação”. Apesar de uma melhoria no último ano, devido ao caso das escutas denunciado por Edward Snowden , no que se refere a uma maior quantidade e qualidade de artigos publicados em sítios mais ou menos especializados: o debate continua, tendencialmente, a ser conduzido – e, por isso, reduzido – tendo em vista uma espécie de “veneração” que parece ser indispensável ao espírito económico e ideológico do tempo. Mas abundavam, exceptuando crónicas de autores “isolados”, apenas o fervor, o “optimismo”, a publicidade mascarada e, principalmente, as press- releases sobre um suposto novo paradigma em direcção a um qualquer paraíso que a tecnologia, por si só, iria pelos vistos alcançar. Imperava, essencialmente, o discurso de “mercado”, do “guru” da comunicação a pedir atenção mediática ou 20 minutos num dos palcos da TED Talk: o actual vendedor de ilusões. Estava quase sempre ausente o contra- ponto visionado ou textualmente publicado. O que, não raras vezes, transmitia o aspecto de que existiria uma nova “seita” em formação com toda uma “longa cauda” de seguidores, clones e repetidores. O panfleto era, quase unicamente, o mesmo: “a proliferação do mercado dos gadgets electrónicos conduz- nos a uma democratização da mensagem: fotográfica, jornalística, cinematográfica ou literária”. Mantra que, após ter sido insistentemente propagandeado por todo o tipo de representantes de empresas da área da tecnologia digital e dos blogues que lhes estão directamente ou ideologicamente associados, é agora emulado, a julgar pela “informação” que é partilhada diáriamente através das redes sociais por um consumidor intencionalmente, ou não, desatento mas principalmente absorvido por questões económicas e nacionais. Compreende-se. Mas inúmeros aspectos importantes, sobre as estruturas e tendências digitais, são constantemente ignorados pelo cidadão “comum” na sua veloz troca de informação, de cartazes feitos no Photoshop com provérbios descontextualizados ou dezenas de fotografias de recém- nascidos. O problema é que são matérias que não versam pontos exclusivamente “digitais”. São complexas, essencialmente sociais e estão a remodelar o nosso estilo de vida a uma velocidade difícil de descortinar por todos nós, por uma comunicação social desatenta por se encontrar em constante competição, pela filosofia ou pela sociologia contemporânea. O que se reflecte numa rara produção crítica quando sobre eles resolvem “avançar”. Os exemplos, de qualquer forma, existem. Como as obras “Experimentum Humanum” de Hermínio Martins, “Crise no Castelo da Cultura” de Moisés de Lemos Martins, “Os Superficiais” de Nicholas Carr ou o incansável trabalho de Evgeny Morozov através de conferências ou da publicação de livros como “The Net Delusion” e “To Save Everything, Click Here”. Mas, dada a enorme torrente de questões que os nossos dias anunciam, é muito pouco.

Nada disto é inteiramente novo. O século XIX, com a revolução industrial a decorrer, a invenção do comboio eléctrico, o telefone ou o telégrafo, assistiu a um género similar de “efervescência”, de crença utópica no “futuro” e na “conectividade” entre os homens. O que só os iria aproximar. Contudo: a miragem foi rapidamente posta no lugar que lhe competia quando se verificaram muitas das consequências que a tecnologia também trouxe ao século XX: uma poluição ambiental cujo máximo estamos neste momento a presenciar, duas guerras mundiais, as bombas atómicas de Hiroshima e Nagasaki e vários tipos de genocídios que não pararam de ocorrer até aos dias de hoje. O determinismo científico esquece, muito facilmente, que o ser humano não é só Sapiens. Também é Demens: muito pouco controlável.

De qualquer forma: a “democracia digital”, enquanto possibilitadora de uma difusão, exposição e publicação de uma mensagem que era anteriormente inacessível à maior parte dos cidadãos, não deixa de ser verdadeira. Mas colocadas as questões, simplesmente, desta forma: o assunto parece ficar arrumado. Devido, essencialmente, a um aspecto delicado. Se o que se pretende é, principalmente, a inclusão e a “democratização”: pouco, a partir daqui, poderá ser questionado a um nível subjectivo. Porque, contra a “ditadura” da narrativa redutora do mercado tecnológico digital e da maioria consumidora que lhe está associada, a dissidência e as opiniões divergentes são olhadas de soslaio. Não são censuradas nem são proíbidas. São apenas ignoradas. E “se pouco pode ser questionado” devido a uma quase “invisibilidade” da pergunta incómoda relativamente ao frenético paradigma comunicacional do momento: não é propriamente uma democracia social real, relativamente às questões aqui apresentadas e por muitas “partilhas” que façamos, aquilo que estamos a atingir. Mas, pelo contrário, um igualitarismo e uma massificação de tipo novo. Por ser transnacional. Que engloba, conectando-as, cada vez mais franjas populacionais. Calando-as. Levando-as, devido a uma questão de inclusão, à auto- censura. São movimentos que nascem do standardizado – quase “programado” – discurso ideológico- económico dos “gigantes do digital”. Dos “corredores” filosóficos e políticos de Sillicon Valley. O nosso país, exceptuando casos pontuais, quase não ofereceu, até agora, evolução. Mas, aqui, também relativamente aos meios de comunicação social. A maior parte das publicações continua a ignorar uma série de questões que são, cada vez mais, debatidas “lá fora”. Que não constituem problemas de “futuro” porque o império único da propaganda faz parte do passado. Por outro lado: as perguntas que, a partir de agora, poderiam e podem ser formuladas não são inteiramente novas. Foram, apenas, temporariamente e convenientemente esquecidas neste princípio de século. Muitas delas foram debatidas em obras de filosofia da ciência e da tecnologia no século XX. Precisamos, por isso, de um novo espírito de inovação que faça frente ao conceito de “inovação” simplista de Sillicon Valley. Para que haja, outra vez, menos certezas absolutas, menos vontade de determinismo. Mais dialéctica. Mais História. Para uma nova e urgente integração.

“Integração” que foi atingida no que relato a seguir: O Clube de Fotografia do Estaleiro Cultural Velha- a- Branca na cidade de Braga, através de um debate que teve lugar no passado dia dois de Maio e que foi conduzido por Inês Viseu, Hugo Moura e Daniel Camacho, teve a capacidade de inverter a situação e escapar, de forma brilhante, ao que referi em todas as linhas anteriores. Ali: existiram perguntas a serem colocadas e um público jovem que estava, contra todas as generalizações geracionais, aberto ao que estava a ser dito. O encontro começou por versar, resumidamente, o significado histórico e o propósito da fotografia para, aproveitando o “gancho”, questionar o seu estado na sociedade actual: da cultura da imagem à sua entronização no discurso colectivo e, daqui, em direcção à multiplicação, à consequente banalização e, então, a uma das tendências mundiais do momento que é, talvez, o seu ponto mais baixo: o selfie.

Contudo: a discussão acerca do “pormenor” fotográfico transcende-o. Serve de ponto de referência e de espelho a uma máquina mutacional muito maior que atravessa todo o espectro informativo e cultural global: o selfie assume múltiplas formas, mais ou menos encapotadas à primeira vista e encontrando- se, neste momento, em quase todo o lado: no rápido post “noticioso”, no vídeo ou “conteúdo”, de “cinco minutos”, colocado em plataformas como o You Tube para que “possa ter um maior número de visualizações” ou na impulsiva adolescência de muito do que se resolveu apelidar de “jornalismo- cidadão”. Interessa, portanto, a rápida exposição.  De preferência: sem esforço. O “eu” passou a ser a mensagem. O que se poderia dizer passa a segundo plano. Mas ele encontra-se também em fenómenos de audiência televisiva como as inesgotáveis e múltiplas variantes de reality shows ou na proliferação de revistas “cor de rosa” que, na última década, ultrapassaram uma linha vermelha através de uma contínua exploração emocional de “vedetas” onde já não se consegue distinguir o que é realidade do que é telenovela, o que é aproveitamento do que é voluntarismo do actor “para que possa atingir um “valor de mercado”. O que arrasta, inevitavelmente, consequências sociais ao nível político e do pensamento contemporâneo. “Se toda a mensagem passou a valer – e a vender – o mesmo”: que caminho seguir, em termos civilizacionais, num cenário de crise económica e financeira? Já o escrevi anteriormente: precisamos de focos de luz. Precisamos de interpretação. Necessitamos de contexto. Onde se encontrem perguntas que interessam.

A inclusão cada vez maior das “margens” – como sinónimo das camadas de uma população que antes do advento da internet não tinha acesso à exposição mediática – não traria problemas se tal não originasse a ofuscasse a especialização e uma certa qualidade superior que a costuma acompanhar. A duração, a originalidade, a dificuldade e a qualidade são preteridas em favor de um “mercado” rápido e precário numa progressão galopante em direcção a uma espécie de ultra- simplificação do discurso. O que passa a “interessar”, em primeiro lugar, não é, exactamente, a “cultura” e o “conhecimento”. Mas a inclusão de “toda a gente” no discurso cultural. O que esbate e relativiza, em sentido negativo, a importância e a visibilidade do questionamento.

Contudo: talvez seja cedo. Talvez as ilusões se desmoronem à mesma velocidade com que se criou a utopia ou com a rapidez com que vão à falência as empresas da área do digital. A história, como foi aliás salientado no debate anteriormente mencionado, prova-nos que existem sempre movimentos de retracção. Nada é certo e nada é eterno. Mas para que a história nos mostre isso: precisamos de estar atentos. Para tal acontecer: precisamos, de vez em quando, de pousar o smartphone. Pensar. Assistir sem “fotografar”. Pensar. Para “fotografar” a seguir.


Epílogo: O Cúmulo de Bartleby

Retomo, através desta crónica, o tema alusivo a Bartleby que iniciei no fim do ano passado devido a um livro que me foi oferecido e intitulado “Bartleby & Companhia” de Enrique Vila- Matas. O objectivo é o de fazer uma espécie de remate e o de chegar a uma tentativa de conclusão. O escritor que se nega a si próprio, que se auto- destrói, que se verga e anula perante heranças passadas é, para o autor, uma espécie de doença contemporãnea. Que, na minha opinião, carece de sentido. A realidade actual é mais complexa do que nunca. Nem existe “O Fim da História” como foi, apressadamente, “profetizada” por Francis Fukuyama. Contra as forças ideológicas civilizacionais que nos querem convencer do contrário: precisamos, como sempre, de escrita e interpretação.

I

Sempre tive uma relação especial com a cidade do Porto. Foi lá que nasci. E, de uma forma ou de outra, acabo por regressar. Embora tenha passado a maior parte do tempo da minha vida em Braga, nunca me consegui decidir, muito bem, entre estas duas mulheres. No Porto: agrada-me a forma como alguns cidadãos foram remodelando, pioneiramente nos últimos sete anos, a baixa. Através da utilização de um modelo que se tem espraiado para outras localidades. Mas, dentro de mim – e não é a primeira vez que escrevo isto -, está, especialmente, a “estática” e conservadora Foz do Douro. Andando por lá: poderiamos estar, por exemplo, no ano de 1991. Uma das fases mais relevantes da minha vida foi, exactamente, o verão desse ano. Foi nessa altura que comecei a fumar: cachimbo. Recusava, por orgulho, tabaco “normal”. Teimosia que ultrapassei rapidamente. Por ter experimentado de seguida um cigarro. E, mal senti a primeira “pedrada”, comprei um maço de Marlboro fumando- o, inteiro, nessa mesma noite. Foi na esplanada da Luz. Por onde sirandava, estupidamente, todos os dias. No ano de 1998, enquanto estudava jornalismo na universidade, morei no segundo andar de uma casa de família que se situava na Rua da Cerca. Entretanto foi vendida. Encontrando-se, neste momento, completamente alterada. Mas não resisto a passar por lá. Peço licença à miúda loura que tenta vender os apartamentos entretanto construídos tentando encontrar o que lhe resta do passado – e nisto: sou bem português; um saudosista insuportável – : vestígios de um relvado que entretanto praticamente desapareceu, vozes, ecos e todo o género de lembranças possíveis. O que entretanto foi construído não deixa de ser “interessante”: “limpo” e moderno. Mas, principalmente, branco. Demasiado. As memórias percorrem várias etapas. Por essa razão: ainda a sinto como se também fosse minha. Foi a única possibilidade, aliás, que tive de viver na Foz. A casa da Rua da Cerca tem, contudo, ainda mais história para o meu pai. Lembro-me de, quando se chegava ao terceiro andar, existir um pequeno espaço que me fascinava: uma porta. Logo a seguir ao final do corrimão, virando imediatamente à esquerda, encontrava-se um muito pequeno lance de escadas. E, quando se subia por elas, não se demorava muito tempo a bater-se com a cabeça: a porta tinha sido construída no tecto. A tentação para a abrir era enorme. Pesada mas irresistivel. O meu pai sempre me falara dela: para que servia; que destino lhe tinha dado.

a)

Escrevi, algumas vezes, desde o fim do ano de 2013, como referi no início, acerca de um fenómeno que é tipico de quem gosta de escrever, de jornais, de literatura: o “síndrome de Bartleby”. Podemos defini-lo, para agora resumir, como aquilo a que, normalmente, intitulamos, para utilizar jargão actual, de “bloqueio criativo”. Pode ser temporário ou permanente. Um qualquer escritor pode encontrar-se, repentinamente, numa situação que faz com que tente uma espécie de fuga inconsciente para a “inabilidade”. Num repente: deixa de encontrar ideias dentro de si, julga-se em demasia e desiste. Espécie de auto- sabotagem

E esta é, especialmente, época de cansaço: espiritual, civilizacional, político e ideológico. Proliferam a tecnologia, os gadgets e as redes sociais. Mas também todo o género de ultimatos. Não são poucos os livros que, em vez de afirmar, anunciam toda a espécie de “fins”: da literatura, da arte, do homem, da história, do estado social. O que se deseja, actualmente, é a “inovação” – “to change” – sem se saber, exactamente, que direcção tomar e com que fins. Importa avançar por avançar. Sem a procura de uma integração séria com o dado. Com o válido que foi anteriormente estabelecido. Algumas das “transições” propostas começam a parecer-nos ameaçadoras para a liberdade. Existem, já, um sem número de promessas mais ou menos minadas. Não previstas, como sempre, pelos deterministas do costume. Para quem a fuga para a frente é sempre solução superior. A “sociedade da informação” e a da “transparência” estão-nos a levar, rapidamente, para uma reconfiguração social mais ou menos impensável há meia dúzia de anos atrás. Como, por exemplo, a espionagem maciça que nos tem sido revelada por Edward Snowden ou Julian Assange. Nada disto tem a ver com a “liberdade” idealizada pelos fundadores da internet. Nem pelos milhares de “gurus” e “especialistas” que, abusando de um infantilizador powerpoint, nos prometeram maravilhas esquecendo o essencial: a natureza humana e a vontade de controle e de poder que lhe é característica. Tão bem explicadas, por exemplo, pelo filólogo e filósofo alemão, do fim do século XIX, Friedrich Nietzsche. Este homem, muito possivelmente, não se daria bem numa qualquer Ted Talk. Nem com o excesso de ruído que configura a estrutura “informativa” actual. Não se socorreu da “estatística”. No entanto: ele intuiu. É que, para o perceber, tinha algo de fundamental: ar puro, floresta e, essencialmente, silêncio. Fez uma revolução em termos de pensamento. Num mundo em que pouca gente andava obcecado em fazê-las. Hoje toda a gente tem a sua. Quer a sua. E, quando não se tem nada de relevante para mostrar: tenta-se na mesma. Através da tentativa de destruição daquilo que é intemporal. Prepotentemente remetido para ecos do passado. Como se não existisse, lá atrás, algo que nos tenta avisar.

O ser humano sente-se esgotado pela razão, pelo fascismo, pelo comunismo, pelo capitalismo. E, agora, pede às maquinas que o salvem. Que o salvem? Mas de quê? De si próprio? Continuamos, portanto, em terreno “cristão”. Tenta-se, por isso, “formatar o sistema”. Contudo: o peso gigantesco do passado e de tudo aquilo que foi até hoje criado é sombra pesada que desafia, continuamente, a vontade de superação e ultrapassagem actual. O que se faz, então, quando a tal não se consegue chegar? Tenta-se uma negação: um esquecimento que não ouse criar. Distribuir uma espécie de ditadura da banalidade: “Tudo é arte”. “Tudo é literatura”. “Tudo é jornalismo”. É convite permanente à esterilidade. Transforma-se a “criação” em “indústria criativa”. Converte-se aquilo que nos poderia proporcionar algo de “sublime” numa espécie de “tempestade de merda informativa”. E, no caso da banalização da literatura, o “sindrome de Bartleby” pode atingir, na era digital, o cúmulo do ridículo. Já tinha referido, no artigo “Formatação Informativa e Cultura Powerpoint” através da citação de um post do blogue Página 23 de Eduardo Jorge Madureira, a existência de ideias “filosóficas” que tentam, actualmente, denegrir a literatura que foi feita no passado em benefício único dos artigos e textos existentes na internet. Não é caso único. Existe pior. Passo, de seguida, a demonstrar:

No jornal diário espanhol El País foi disponibilizado, no passado dia 15 de fevereiro, um extenso artigo da autoria de Eduardo Lago sobre Kenneth Goldsmith, o fundador da UbuWeb nascido em Freeport, no estado de Nova York, no ano de 1961. É, pelos vistos, um teórico da “escrita não criativa”. A plataforma digital que criou em 1996 tem o objectivo de armazenar o legado completo da vanguarda clássica. Transformou-se, com o tempo, no arquivo de arte de vanguarda com maior número de “conteúdos” da internet. Entre os seus heróis estão John Cage, Walter Benjamin, Sol LeWitt e, como não podia deixar de ser, um dos grandes mestres da vulgaridade: Andy Warhol. Segundo o próprio Goldsmith, “o mundo é cada vez mais warholiano – nisto: não podiamos estar mais de acordo -…a nova escrita consiste em não escrever, a nova leitura, consiste em não ler. A nossa relação com a linguagem mudou”. Começa, pelos vistos e aqui, uma qualquer “fenomenal” revolução da qual não nos tinhamos apercebido. Esquece-se, contudo, de mencionar que, por trás de uma enunciação ou, vá lá, de uma análise social se esconde, sempre, outra coisa: um desejo. Porquê esta preocupação em afirmá-lo? Cria-se o que se defende. Nem que seja a criação de uma destruição. Este homem entrou num beco sem saída. E, na falta de melhor, dá vivas à própria anulação. Distribuindo o que lhe é próprio – a falta de ideias – ao resto da humanidade. Goldsmith, de qualquer forma, não é totalmente virgem: estudou na Escola de Desenho de Rhole Island. Formou-se como escultor e, ainda segundo o artigo, aproximou-se da poesia conceptual. O que fez com que se interessasse, a seguir, pela literatura. Há quem se importe com o trabalho que tenta desenvolver: Foi convidado pela Documenta de Kassel para apresentar o arquivo enquanto “produto artístico”. Que é, agora, visitado com frequência por escritores, hackers, músicos, poetas e todo o tipo de cineastas. Goldsmith foi, adicionalmente, nomeado como Poeta Laureado da MoMa. Para a qual desenvolveu um projecto: colocou duzentos escritores a lerem diante de pinturas com o objectivo de descontextualizar o museu para que perdesse a aura institucional. Para que se convertesse num espaço “relacional”. Talvez se tenha transformado, momentaneamente, em algo interessante: “liam diante de um quadro de Pollock ou Matisse…entrando em conversa com grandes artistas do passado. Contudo: é tendência que não deixa de se generalizar. Está na moda: a administração do jornal francês Liberation, por exemplo, também pondera, contra a vontade dos jornalistas – que também devem “cheirar” a “instituição” -, descaracterizá-lo e convertê-lo em mais uma rede social e num “espaço multi- cultural”. Goldsmith considera que a “arte” ultrapassou a literatura. Como se achasse que, afinal, literatura não é arte. Mas é ideia comum. Se a óptica for a de que só é arte o que quebra barreiras. Ficando, desta forma, o passado continuamente desclassificado. A era da internet, para Goldsmith, introduz uma novidade. Porque, para ele, constitui “uma máquina gigantesca que não faz mais do que gerar escrita. Ao nível mais profundo e elementar, tudo o que existe na internet se reduz a um código alfanumérico que é a base material de todos os suportes que conhecemos: fotografias, canções, vídeos e livros. Quando alguém envia um artigo em formato JPG e não se recebe bem, aparece no ecrã um código binário alfanumérico. Se se pensa bem, o motor que propulsiona a internet é a literatura”. A confusão “conceptual”, neste caso, não poderia ser maior. Fica-se a entender o que, para o “poeta”, significa “literatura”. Acrescenta: “…a literatura, como meio, imita os computadores e isso não podia ser mais interessante”. A inversão é total: é, mais uma vez, a tentativa de fazer com que máquina “ultrapasse” ou “negue” o homem que a cria. A criatividade e a originalidade, no projecto de Goldsmith, desaparecem. O objectivo é o da erosão da individualidade e da subjectividade: “nunca utilizo a primeira pessoa, nunca expresso emoções subjectivas, tento ser mecânico. Converti-me num copista, não escrevo textos originais, copio textos que já existem”. Prestemos atenção a algumas das suas “obras”: Para “Soliloquio”, do ano de 2001, transcreveu todas as palavras que pronunciou durante uma semana. “Dia”, publicado dois anos depois, reproduz, com anúncios incluídos, todas as palavras que fizeram parte da edição do New York Times do dia um de setembro do ano 2000. Goldsmith também tem a sua triologia: “O tempo” de 2005, “Tráfico” de 2007 e “Desportos” de 2008. Para o primeiro trabalho foram transcritos todos os boletins metereológicos – com a periodicidade de um por dia – transmitidos durante o período de um ano. O segundo faz uma recolha de todos os noticiários retransmitidos a cada dez minutos por uma estação de rádio durante 24 horas. O terceiro faz a transcrição de um jogo de baseball disputado entre os Yankees e os Red Socks. O resultado foram três livros. Cada um com 150 páginas. Goldsmith, apesar de toda a inutilidade, admite não ter leitores e que os seus livros são “muito chatos”. E afirma que o objectivo é o de se “pensar acerca de coisas que nunca pensamos”. E que “a medida do êxito de um livro destes é a quantidade de debate que gera”. Afirma, também, que “a missão do poeta de hoje é a de não escrever poesia”. Tece considerações sobre o deficit de atenção a que está a conduzir a leitura na internet devido ao excesso de informação. Para ele, esta espécie de “incapacidade” geral é, também, “uma nova forma de vanguarda. Não há sentido em trazermos novos textos ao mundo”. Não nos enganemos: este homem deseja que paremos de escrever. Pode ser, contudo, que exista “salvação”: para explicar tudo isto teve que recorrer ao formato do ensaio. Sem “transcrições”. Sem copy- past. Como, por exemplo, “Escrita não criativa”. Ou “A Vingança do Texto”. Goldsmith não se anuncia, portanto e apenas, como Bartleby ou candidato a Bartleby. Deseja, talvez para a configuração de um mundo mais “democrático”, que abandonemos, de vez, a escrita e a leitura. Que sejamos, como ele, todos Bartleby´s. Todo este discurso, sabemo-lo, não passa de lixo interpretativo. Pequena vontade de revolução individual. Num planeta infestado de pequenas revoluções individuais. A pergunta é simples: qual o objectivo social de todo o esforço e trabalho de Goldsmith? Para que nos serve tudo isto para além de nos tentar convencer a uma desistência, a uma renúncia ao interior e à individualidade do ser humano enquanto criador? De favorecer uma negação da literatura enquanto “política” e arte ou, pelo menos, de arte em potência? De um evitamento da análise do mundo que se encontra neste momento em constante reconfiguração? É que, exactamente pela complexidade que ele agora apresenta, nunca precisamos tanto de interpretação: séria e integradora. Quererá Goldsmith deixar de entender? O filósofo e psicanalista esloveno Slavoj Zizek afirmou recentemente, numa entrevista a um canal brasileiro, que “nunca precisamos tanto da psicanálise como hoje em dia” e poder-lhe- ía responder, como num vídeo a que se pode aceder facilmente através do You Tube, “Não actues. Pára para pensar.”

II

Costumava regressar à casa da Rua da Cerca numa época em que já não vivia lá ninguém. Era preciso ter cuidado com os degraus, meio partidos, de madeira. Os quartos não passavam de uma espécie de armazém a abarrotar de colchões velhos, caixas de papelão cheias de objectos em desuso, revistas poeirentas, pressianas estragadas e mal corridas. Mas gostava de ficar a olhar para eles. Para o que acontecia, ali, no passado. Sou adepto de “fantasmas”, antiguidades, velharias e lugares proíbidos. Agradam-me as ruínas, as silvas e as teias de aranha de espaços em decadência. De ver o pó: o fumo a dançar e a rodopiar nos pequenos feixes de luz que saem das frinchas apodrecidas das janelas. A porta, no tecto, lá estava. E, como sempre, a pedir uma visita. Como aquele género de pequenos clubes que julgamos secretos e que fazemos em criança com amigos em sótãos ou garagens. Mais uma vez: aproximava-me do pequeno lance de escadas para a tentar abrir. E, como sempre, exigia bastante esforço. Tornava-se ainda mais irresistível depois de totalmente aberta. Porque, quase sempre que tal acontecia, havia a luz solar forte que encandeava. Preparava-me então para subir.

b)

Voltando ao livro de Enrique Vila- Matas: para um último exemplo – o mais radical que encontrei – de um típico Bartleby. Para não sermos totalmente injustos com o presente: Goldsmith pode constituir uma figura caricata e esclarecedora do tipo de civilização cultural que tentamos construir. Mas o seu “programa”, estupidez e anulação são absolutamente irrelevantes se forem comparados com a do senhor Chanfort. Foi um homem dedicado à literatura que conheceu, sem esforço algum, êxito durante a vida. Amavam-no as mulheres e os grandes salões estavam-lhe destinados. Ganhou, adicionalmente, o apreço de Luís XVI e de Maria Antonieta. E entrou, ainda bastante jovem, para a Academia Francesa. Contudo, apesar de todos os privilégios, desprezava o mundo. Como, igualmente, se odiava a si próprio: “O homem é um animal estúpido, a julgar por mim”. Albert Camus escreveu, sobre Chanfort, o seguinte: “…a destruição do seu corpo é pouca comparada com a desintegração do próprio espírito. Isto é, finalmente, o que determina a grandeza de Chanfort e a estranha beleza do romance que não escreveu, mas do qual nos deixou os elementos necessários para podermos imaginá-lo”. O único livro que publicou não foi, de facto, um romance. Intitula-se “Máximas e Pensamentos, Carácteres e Histórias”. Odiava a sociedade do seu tempo e, ainda segundo Camus,”…a sua extrema e cruel atitude conduziu-o a essa derradeira negação que é o silêncio”. Declarou no seu livro: “todos os dias engrosso a lista de coisas de que não falo; o maior filósofo seria aquele cuja lista seria a mais extensa”. Negou, adicionalmente, a obra de arte, o que o extremou e o conduziu a esse prolongado silêncio. Terminou em suicídio:” Chanfort levou o “Não” tão longe que no dia em que pensou que a Revolução Francesa – da qual fora inicialmente entusiasta – o tinha condenado, disparou um tiro que lhe rebentou o nariz e lhe vazou o olho direito. Ainda com vida, voltou à carga, degolou-se com uma navalha e golpeou a sua carne. Banhado em sangue, esgaravatou no peito com a arma e, por fim, depois de abrir as curvas das pernas e os pulsos, caiu sobre um autêntico lago de sangue. Mas, como já foi dito, tudo isto não foi nada comparado com a selvagem desintegração do seu espírito”. Chanfort, num texto intitulado “Produtos da Civilização Aperfeiçoada”, propunha a seguinte questão: “Por que não publicar?”. Ficam, aqui, algumas das respostas: “Porque me parece que o público possui o cúmulo do mau gosto e o desejo de difamação”; “Porque não desejo fazer como as gentes das letras, que se parecem a asnos que dão coices e lutam pelo seu lugar na manjedoura vazia”; “Porque o público só se interessa pelos êxitos que não aprecia”.

III

A luz que surgia do pequeno espaço para o qual se entrava depois de abrir a porta era, de facto, o que mais atraía ao início. Mas depois de subir deparava-me com uma pequena sala, mais ou menos rectangular e de tecto baixo, com um colchão velho e rodeada por pequenas janelas envidraçadas. Parecia uma pequena embarcação. De onde se podia ver, a toda à volta, “quadros” da Foz do Douro. E, principalmente, as ondas do mar. Aquele lugar só poderia ser inspirador para uma criança. Chamavam-lhe “O Mirante”. E, segundo me contou, foi ali que o meu pai concebeu e produziu o seu próprio jornal com uma velha máquina de escrever. Intitulava-se, justamente, “O Mirante”. Fazer um jornal enquanto se olha para o mar. Para um obcecado pela imprensa como eu: não existe melhor cenário do que este . Fazer um jornal a olhar para o mar, literatura a olhar para o mar, escrever a olhar para o mar.

Não tenhamos dúvidas: para resolver qualquer angústia bastam os pés no oceano. Não há “bloqueio criativo” ou “síndrome de Bartleby” que, nas ondas, não se desfaça. É o que Goldsmith e, provavelmente, Chanfort deveriam ter feito. Embora com uma força comparável à desistência que tentam, a todo o custo, difundir: serem deitados ao mar. Para que pudessem regressar afirmativos. A dizer “SIM”: à escrita e à literatura. De tão obcecados com a forma: esquecem-se do que poderiam contar. Basta olhar em volta. Evitemos, por isso, uma contaminação. Vamos escrever; fazer um livro; fundar um jornal. Deixemos a “revolução” para os adeptos da negação.