Uma das capacidades que mais admiro, nos outros, em época de “postagens”: a de se tentar escrever bem. Para que eu próprio possa ousar, experimentando, evoluir. Evitando o texto curto: uma das “doenças” deste século. Trata-se de uma luta cultural e civilizacional. De um problema de contaminação habilitado por uma teimosia constante e habitual: a “eficiência” tecno-económica. Dou como exemplo contrário: a aptidão para se pegar numa só foto, como fez Roland Barthes, e de a conseguir dissecar. Como, aliás, o autor o relatou através do livro “A Câmara Clara” que foi editado no ano de 1980. Não constitui tarefa fácil. Passa-se o mesmo relativamente ao cinema: assistirmos a um filme, em sala – para o sentirmos melhor -, e, depois de o deixarmos cerca de uma semana em “pousio” interior, a “marinar” e a amadurecer, convertê-lo num texto que caiba, ainda , em página inteira. Como continua a fazer, para nos referirmos apenas ao território nacional, o semanário Expresso. O diário Público deixou de os disponibilizar há já algum tempo devido a inúmeros factores – e, aqui, a falta de espaço não é dos menores -. Reduzindo, desta forma, a interpretação e o contexto histórico- cinematográfico a umas magras colunas que, apesar de regularmente bem escritas, têm agora de se fazer valer através de um estilo mais condensado. Tenho pena. Costumava ser um hávido consumidor de artigos jornalisticos que lhe eram relativos. As interpretações sempre me fascinaram. Nisto: o falecido João Bénard da Costa era rei. Escrevia, sobre filmes, como se pintasse uma tela. Davam-lhe espaço para o fazer. E o sentido, a procura de um sentido que Bénard parecia exigir extrair através do uso de uma palavra quase musicada, só poderia ser conduzido dessa forma. Não interessa, para esta crónica, se existem blogues mais ou menos especializados e direccionados para o tema com textos de igual ou de superior qualidade. A imprensa generalista, com os seus suplementos culturais, continua a representar um outro papel social. Não deveria, por isso, continuar a ser desprezada, como o é actualmente, por constituir uma espécie de aparência, física, real ou imaginária, aos olhos dos cidadãos de poder e de “controle”. Sublinhando: muitas vezes imaginária; a “democracia” igualitarista precisa de “inimigos”. Pura e simplesmente porque, no que respeita à comunicação, quase tudo representa luta, poder e combate cultural. Tentação que, obviamente, não escapa aos inúmeros tweets, blogues e start-ups de cariz informativo – e desinformativo – que são criados diáriamente. A imaginária “sociedade reticular”, neste aspecto, aumentou a competição mas, adicionalmente, o nível de paranóia social relativamente ao que é dito e ao que é escrito pelo outro. A imprensa generalista, nas mãos certas, continua a ser necessária. Apesar de todos os problemas que tem enfrentado em termos económicos e sociais. Para que nos possa continuar a indicar caminhos de reflexão comuns. Continua a constituir um ponto de encontro necessário que une e concentra visões, um pouco mais gerais, da realidade. Impede, um pouco, um género de “autismo” muito contemporâneo: o isolamento social favorecido pela tendência para a “personalização de conteúdos”. Alguns, nesta fase em que quase tudo parece significar “elitismo”, teriam a tentação de apelidar esta posição que defendo como “tendência para o controle”. Existe, contudo, uma outra que vai para além desta generalização: uma ultra- valorização do individualismo em detrimento daquilo que se teima em apelidar, estigmatizando, de “jornalismo tradicional”. Como se este último precisasse de desaparecer em nome dos múltiplos interesses da filosofia concentracionária da oligarquia digital. É jornalismo a tentar ser o que sempre foi: ponto final. Esta posição, bastante radical, tem incentivado, e criado, o empolamento, não apenas do que se convencionou chamar de “jornalismo- cidadão”, do “narcisismo- cidadão”: em direcção ao selfie, ao império da velocidade, da facilidade e da quantidade. Em última análise e em termos gerais: à falta de qualidade informativa, jornalistica e literária. Interessa dar voz à “maioria” em nome de um precário comércio digital. Contudo: somos, agora, mais prisioneiros das estatísticas. Mais escravos das “citações” para nos tornarmos visiveis em motores de busca. Do número de visitas por página. Para tal acontecer: a “classe média informativa” transmutou-se numa espécie de obstáculo a eliminar. As perguntas que mais interessam, sobre o poder, deixam, por isso, de se fazer com a mesma insistência e pormenor. Muito nos começa a passar ao lado. A análise e a crítica, exigente e profissional, têm sido desvalorizadas por defendermos, actualmente, um ecossistema económico- digital “infestado” por “comentários”, “comentadores” e todo um conjunto de ansiosos por veículos publicitários como são as conferências TED Talk. Tentando-se degradar, para que tal seja possível, o que aparenta vir de “cima”. Mudanças sociais que se tornam insuficientes para uma conveniente – ou inconveniente – compreensão histórica, artística, literária, jornalistica, musical e cinematográfica. No que se refere a esta última área, navegamos, hoje em dia, sofregamente por sítios infestados de cartazes com filmes principalmente americanos: os de terror, as comédias românticas e os filmes de acção. O trio “paralítico” habitual que, grande parte das vezes, é-nos oferecido como se fosse uma espécie de pronto-a-comer sem qualquer descrição, com qualidade, que nos permita situar a obra de uma forma política, social e, por isso, temporal. Um ciclo vicioso que tem favorecido o parco interesse dado ao argumento e à realização – à autoria e ao nome do realizador – por parte de um género de consumidor, de tipo novo e coleccionista, que, acantonado no seu “nicho”, se tem habituado, progressivamente, a uma procura preguiçosa, pouco informada, fragmentada e desconexa: “vê-se o primeiro que aparecer”. Tanto nas salas que ainda resistem em centros comerciais como nos diversos sítios que proliferam pela internet. É a cara, a pose dos actores e a capa mais “atractiva” aquilo que parece interessar. A história do cinema como, aliás, quase toda a história, parece, actualmente, ser pouco necessária à cultura popular. “Formatar o sistema !”: repete-se, por aí, relativamente a quase tudo o que seja manifestação cultural. Mas a presente “revolução”, mais do que “digital”, é social. Trata-se da construção de um estado semi- amnésico, de pensamento, que se deseja alheio àquilo que lhe é “anterior”. Uma “mudança de paradigma”: um rompimento que, embora seja necessário em determinados aspectos, parece querer evitar, em larga escala e apesar de toda a informação e literatura, dispersa e digitalizada, um significado e o passado. É apenas uma da contradicções do presente. Continuamos, por estas e cada vez mais, a precisar de jornais. As assinaturas nunca foram tão baratas. Entraram em espírito low- cost.
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A Nossa Ilusão (Um Problema de Tradução)
Assistimos, no momento presente, a um problema de “tradução” que considero ser, tendencialmente, mais ou menos geral: muita gente a “esbracejar” dentro e fora de redes sociais. Mais do que do livro, do artigo de opinião, do “conhecimento” ou da “informação”: podemos baptizá-la, num contexto que é favorável a todo o tipo de catalogações apressadas, de “Sociedade do Comentário”. Há não muito tempo atrás, para dar um exemplo que me parece ser essencial, um tradutor de uma obra específica não teria de conhecer, unicamente, um determinado idioma na perfeição. Ele era “obrigado” a dominar o campo de estudo, a conhecer a fundo o autor a traduzir, ser mais ou menos especialista – no que isto tem de “tradicional”, “antigo” e, portanto, pormenorizado – em filologia para conseguir determinar o contexto temporal e, por isso, moral em que determinada obra, palavra ou expressão teria sido escrita. Se fosse caso disso. O que, em certa medida, “acabou”. É um género de gente que, hoje em dia, serve para “abater”: eles “pretendem” dar cabo da “democracia”: é que, agora, qualquer editora ou start- up pode, gratuitamente ou por “cinco tostões”, contratar um “chacal” que vagueie pela “China”. Isto passa-se em grande parte dos sectores comerciais: “É a crise!”. Favorece-se, para a combater, portanto: mais crise. Não admira que pouca gente se ande verdadeiramente a compreender por mais que tente “comentar” ou escrever: o “problema de tradução” – entendido aqui como “interpretação”: apenas para que na “era da transparência” e da “repulsa” pela metáfora, não sejamos tão “opacos” – tem sido contaminante. Estamos infestados de “roedores” por todos os cantos. Alguém perguntaria: “E os psicólogos? Escapam?”. Alguns – ” mas só alguns” – já conseguiram entrar no século XXI. Não é que esbracejem, como todos nós, mas, por vezes, também preferem não ouvir: o que vai dar mais ou menos ao mesmo. A cada um deles o seu livro, a sua história, a sua escola ou a sua visão. Portanto: o seu autismo. A nossa ilusão.
A Perigosidade da Escrita
Não é raro termos que ter bastante cuidado com aquilo que “resolvemos” escrever. Após e quando o estamos a fazer. Ainda mais do que ler – e, na fase actual, com toda a desinformação que circula velozmente – : precisamos de utilizar, não uma nem duas, mas, pelo menos, três luvas para não nos ferirmos. A escrita pode ser uma seta apontada contra nós mesmos. Principalmente quando temos a “lata” de sermos “poéticos” num mundo que se tornou pretensamente “científico”. Nunca sabemos, com uma palavra, que pedregulho estaremos, inconscientemente – no seu significado infantil e não freudiano -, a tentar levantar. Que mistério estaremos a destruir. Que inflamação estaremos a activar. Há expressões – que parecem ter vontade própria – que são utilizadas para esconder: contra aquela inocência que pretende que todas servem “para comunicar”. A minha experiência mostra-me que, por trás de cada uma – por “mesquinho” que isto possa parecer, interessa, aqui, o pormenor -, pode estar, à espreita, um “monstro” a ofegar. Quem costuma escrever sabe que, para além do prazer de o fazer, existe uma dificuldade, um medo, um “terror”: o que virá a seguir ? É exactamente isso que nos faz, por um momento, parar. Evitar um artigo. Deixar um livro por acabar. Quando há qualquer coisa que começa a espreitar: pomo-nos, rapidamente, a tapar. Evitando, deste modo, aquelas linhas. Julgo que, normalmente, “as piores”. Ou afinal: por serem exactamente as melhores? Um texto, assim como a dor, poderia ser “melhorado” indefinidamente. Contudo: “duas” revisões, por uma questão de cautela, bastam !
Não Há Lugar Para Desculpas no Planeta dos Vampiros
Esta é, para mim, uma das mais importantes “guerras” do século XXI. Batalhas que, de início, nem sempre são políticas: temos, hoje em dia, acesso a muita “informação” e a muita “partilha de ficheiros”. E, no entanto, uma das características mais vincadas que costumo reparar na minha geração – estou com 39 anos – é uma tendencial teimosia para a ausência do pedido de desculpas. De uma verdadeira “partilha”: a das responsabilidades. E, portanto, de um verdadeiro “conhecimento”. Interior. Não lhe é, de todo, exclusiva. Conheço casos angustiantes em gerações mais velhas. E o narcisismo empolado das mais novas – “as mais bem preparadas de sempre” – não tem ajudado. Tanto em amizades como em relacionamentos mais aprofundados parece dominar uma pulsão para a fuga, para o “bater do pé”, para o “eu sou assim” – portanto, “se sou assim”, “tenho, forçosamente, que estar sempre correcto” – como se o outro não fosse “assado”, para uma atitude mais ou menos esfingica de aparência inquebrantável que, no fundo, nunca nos leva a lado nenhum. “Toda a gente” parece ter razão. Mesmo nos casos mais absurdos. E a solução parece ser, pelo contrário, a de não a tentar encontrar. Pior que tudo é quando pedimos desculpa a este tipo de pessoas e aproveitam para dizerem “não” mais uma vez. Ou quando tentam, porque mostramos “fraqueza”, picar com nova culpabilização. Às vezes com mais força ainda. Porque, no fundo, são pessoas “fortes”. “Fortes” como um pequeno montinho magoado de pedaços de vidro. Uma aspereza e uma tenacidade consegue-se notar nas rugas entesadas de uma face quase encarquilhada por lágrimas secas. Quando as beijamos: têm, pelo contrário, uma grande vontade de morder. De nos fazer sangrar. São “liberais”: porque, no fundo, não se aguentam em nenhuma relação. Não raras vezes afastam-se. Depois de terem deixado para trás o seu pequeno rasto, orgulhoso, de destruição. É desta forma que conseguem compensar problemas antigos. Com este género de “Olho por olho, dente por dente” inconsciente: conseguem operar em nós uma verdadeira “contaminação.” Depois, claro, existem aqueles que estão sempre a pedir desculpa por tudo e por nada. Quando já desistiram devido ao cansaço. Quando já deixaram de perceber o que quer que seja. Apenas com o único objectivo de levantarem uma bandeira para a rendição. Porque, lá bem no fundo, amam. E estão fartos de sangrar. Antes que se transformem num coágulo humano. Todo o sucesso recente de séries televisivas ou de livros direccionados para o tema dos vampiros não foi por acaso. Foi uma auto- identificação que os elevou, novamente, a símbolos maiores da cultura popular. Eles “existem”.
Digitalização e Selecção Literária
Estamos em época de “contaminação”. Que não se trata apenas de uma generalização, o que é positivo, da vontade de escrita a nível internacional. Contudo: em grande parte dos casos ela é de má qualidade. A “mistura” multiplica-se e, por isso, confunde-se na rede. Muita não se baseia, para se tentar “inscrever” – utilizando a conhecida expressão popularizada pelo filósofo português José Gil -, em antecedentes literários. Uma grande parte dos trabalhos que são enviados para diversas editoras não tem sequer “formação”. Não existiu leitura: o passado foi, por isto, ignorado. Não raras vezes, por outro lado, é utilizada uma linguagem essencialmente televisiva: o discurso directo. E a auto- publicação, embora benéfica em termos democráticos, é, com muitas excepções, filha do instante e do curto- prazo. Não se trata, no que respeita a este artigo, de nos alhearmos do que é actualmente produzido. Mas o que existe tem de ter filiação. E ela deve ser procurada. Não são raros os autores actuais que evitam a leitura de obras do século XX e das que o antecedem por uma questão de “mercado” e de “legibilidade”. O que foi escrito lá atrás tornou-se estranho: “complexo”. A linguagem, ao que “parece”, “inacessível” e “erudita”. Não é que se deva denegrir o presente. Mas o futuro terá de ser construído não apenas com as premissas actuais – embora também – mas com tudo aquilo que os nossos pais e avós nos quiseram delegar. Em termos meramente “científicos” muitas páginas acabaram por caducar. Mas temos sempre livros maiores, mestres integrais e uma repescagem de pormenores que não nos convém ignorar. Sem contudo, se nos quisermos levar a sério por inteiro, deixarmos de estar atentos ao que vem aí. Levanta-se, de qualquer forma, uma questão. Se a rede se agiganta; se são criados diáriamente, apenas através do wordpress, cerca de 100.000 blogues: quem fará a selecção do que nos interessa em termos civilizacionais?
A Digitalização da Moral Sexual
Há qualquer coisa “no ar” a fazer-nos sentir que, apesar de todo o avanço tecno- científico actual – ou, pelo menos, de uma sobre- publicitação do mesmo em nome do “obrigatório” “estudo”, do apressado artigo académico ou das “citações”, em inglês, nas revistas ou plataformas da especialidade – existe algo que, em termos sociais, se retrai. O ser humano, por muito que deseje o contrário, não é, ainda, um gadget que possa ser actualizado, renovado e apresentado em cima de um palco todos os anos. Pelo contrário: sai-lhe a “casca”. É o verniz a estalar em tempos de crise económica e finaceira. E tudo aquilo que aparentava “liberdade” ou “democracia social” entra, vagarosamente e mais uma vez, em processo de erosão. Em termos civilizacionais, como sempre, nada está garantido. Ou melhor dito – para nos adaptarmos ao léxico computacional corrente -: programado. A “cultura” não nos foi oferecida de bandeja. É uma esforçada construção de milénios, com avanços e retracções, não raras vezes com erupções repentinas e transformações radicais quando menos as esperamos. Como o regresso de indesejáveis arcaismos morais.
Basta uma vista de olhos pelas páginas dos jornais: regressa o nacionalismo, o racismo, tentativas de anexação de territórios como também o discurso castrador sobre as minorias e as facções da população mais fragilizadas. É a “austeridade” social a seguir a económica. Movimentos que têm origem, ou reflexo, em representantes políticos – responsáveis embora também eternos bodes expiatórios – mas que, adicionalmente, englobam toda uma “sedimentação” e uma vontade populacional bastante mais vasta. Que acabam por abarcar o tipo de instituições que actualmente são louvadas e erigidas como que constituindo alternativas em direcção a um mundo mais justo e igualitário. Não me vou focar, por agora, em questões económicas. Já o tenho feito insistentemente nos últimos cinco anos. Seguirei, desta vez, por um outro caminho: a questão da moral sexual e as formas que pode adoptar, através de alguns exemplos que considero significativos, neste início do século XXI. Existem, nas empresas que são habitualmente denominadas como “gigantes do digital”, particularidades que nos trazem à memória qualquer coisa semelhante à de uma nova castidade. Com todo um renovado conjunto de directrizes e “proibições”. O “dedo” está apontado. O discurso dominante gira, habitualmente, em torno da liberdade de expressão. Mas um olhar um pouco mais aprofundado revela-nos, aqui e ali, uma realidade ligeiramente diferente. Não se trata, unicamente, de uma questão terminológica: a “nuvem” – a cloud – é onde depositamos as nossas aspirações de “salvação” cultural. Para o pôr mais ás claras: gratuitidade cultural. “De mãos dadas”: “adorámos” Steve Jobs, co- fundador da Apple Inc., assim como Tim Cook, o “clone” escolhido que lhe seguiu. Detentor de semelhanças fisicas quase perturbantes. Depositamos “esperanças” na monopolista distribuição literária por parte de Jeff Bezos que idealizou a Amazon. E esperamos poder comentar livremente a realidade através da criação de Mark Zuckerberg: a rede social – ou como diria Eduardo Cintra Torres: rede social anti- social – facebook. Contudo:
Sabemos que a Apple censurou no ano de 2012, através da loja ITunes, um e- book de Naomi Wolf intitulado “Vagina – uma nova biografia”. Que, segundo o sítio da Globo, “trata da própria, mais especificamente dos motivos que fazem o orgão genital feminino ser ainda hoje citado de maneira “um pouco envergonhada””. A ironia relativa à citação: a expressão foi substituída por “v****a”. Não é caso único: o mesmo aconteceu a “Os monólogos da vagina” de Eve Ensler. Como a um episódio da série “Girls”: “Vagina Panic”. Do “outro” lado: a palavra “pénis” teve destino semelhante relativamente ao livro “The Penis Thieves” de Frank Bures. A empresa já tinha feito o mesmo, no ano de 2010, no que respeita à lista de livros mais vendidos da Ibookstore: dois contos eróticos de Carl East – “Blond and Wet, The Complet Story” e “Big Sis” – que ocupavam, respectivamente, a primeira e a segunda posição. E um de Ginger Starr – “Six Sexy Stories” – que ocupava o quinto lugar da tabela. Existem bastantes mais exemplos. Que incluem revistas famosas, bandas desenhadas e cartoons.
A ultra- multinacional Amazon não fica atrás: a empresa, no ano de 2012, cancelou o contrato que tinha com a Digital Manga Publishing. Alegadamente porque a banda desenhada que distribui continha “conteúdos impróprios”. O problema foi a edição de um yaoi, uma espécie de romance homossexual masculino, pelo facto de entrar em conflito com as directrizes da empresa. Nomeadamente: a proibição de “imagens gráficas de pornografia e material pesado”. Os conteúdos continuaram à venda , apesar de tudo, através de outras lojas de distribuição digital. A questão é que a Amazon não faz uma distinção clara e objectiva entre pornografia e erotismo. E a censura, por outro lado, não se estendou a conteúdos de género heterossexual. A empresa defendeu-se dizendo que se tratara de uma “falha na catalogação dos livros”. Que ficaram, mais tarde, novamente acessíveis mas difíceis de serem encontrados. O mesmo aconteceu relativamente a outro tema: o incesto. Segundo um artigo de Isabel Coutinho disponibilizado pelo jornal diário Público e intitulado “Amazon censura livros sobre incesto”: a empresa retirou livros, sem avisar, que o mencionavam dos leitores electrónicos das pessoas que já os tinham comprado. Como nota, bastante significativa, de “curiosidade”: a Amazon Publishing acaba de criar uma nova divisão, dedicada à ficção e à não- ficção, intitulada Waterfall Press. O objectivo será o de vender livros com temática cristã.
A rede social facebook, conhecida por fazer constantes alterações sem qualquer tipo de pré- aviso, costuma, periodicamente, censurar conteúdos como se um qualquer algoritmo comandasse as operações. O discernimento, de facto, não costuma ser grande quando a nudez é identificada. O que leva à exclusão de obras de arte – que podem incluir a escultura, a pintura, o cinema ou a fotografia – de diferentes regiões e épocas da história humana. De vídeos em que sejam mostrados os orgãos genitais dos membros de diversas etnias que não costumam partilhar os hábitos ocidentais no que respeita a moral ou a vestuário. Ou de fotografias em que está presente a amamentação materna. A moralização falha, contudo e por exemplo, quando esteve em causa a postagem de um vídeo que mostra uma mulher a ser decapitada por parte de um grupo organizado ligado ao narco- tráfico mexicano.
Qualquer empresa privada, de qualquer forma, tem o direito de definir regras de postagem ou de publicação. Contudo: está em causa a concentração de actividades que estavam anteriormente mais dispersas e por esta razão, mais livres. O comércio tradicional livreiro não sobrevive face às constantes investidas de empresas supra- nacionais como a Amazon. E espaços de distribuição informativa, como o facebook, há muito tempo que deixaram de constituir passatempos marginais. Constituem novos “estados” aos quais é quase impossível escapar por razões de ordem publicitária ou laboral. O networking faz parte do dia a dia de milhões de cidadãos a nível internacional. Constituem hobbies standardizadores e massificadores que orientam o discurso planetário e que promovem, não raras vezes, a auto- censura a nível consciente ou inconsciente. O comércio tradicional, nisto, deixava, pelo menos, “respirar”. Contudo: o foco teima em não se reorientar. Os novos alvos são, ainda, demasiadamente perdoados. Quando, no fundo, constituem, actualmente, uma chave e uma das peças principais.
O jornalismo contemporâneo, apesar de progressivamente mais atento, não precisa de deixar de escrutinar aquilo que se denomina como “tradicional”: o que, ainda, aparenta ser exterior ao tentáculo das estruturas digitais. Mas à medida que a tecnologia se desenvolve e a separação se torna progressivamente mais difusa ou mesmo inexistente: precisa de começar a interpretar um planeta que será, a partir de agora, cada vez mais complexo, dificil de noticiar e de descodificar. Explicações que não se conseguem com posts nem “infográficos”. Se assim o desejar: terá muita investigação a fazer e trabalho de qualidade a realizar.