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A “Big Data” (A Era Do Voyerismo II)

Os “dados” foram lançados: a tão proclamada “Big Data” está para durar como um dos grandes negócios e projectos civilizacionais deste já cansado início do século XXI. E, com a nossa conivente distracção, como um gigantesco explorador colectivo. Após sucessivas promessas de “liberdade informativa”: o “sufoco” através da multiplicação de uma espionagem global generalizada. E, como consequência, o “aprisionamento” com a forma de auto- censura intelectual e imaginativa. Já nos bastava o facto de inúmeros escritores considerarem, por via de um relativismo “sem sentido” e por uma questão de puro networking, que não se devem comprometer politicamente e, por esta razão, publicamente. Não me refiro ás banais opções partidárias. O medo da observação, segundo alguns artigos recentes publicados, está a conduzir a uma certa paralisia criativa. E estamos a deixar, velozmente, de nos importar – por múltiplos motivos: a concordar – com uma prática de intrusão na vida privada que seria considerada impensável há poucos anos atrás. A habituarmo-nos a uma galopante perda de privacidade em diversas áreas da existência. Trata-se, como quase tudo o que se refere à complexa e ideológica arquitectura tecno- económica em construção, de um universo, devido à sua crescente dimensão e a uma quase incontrolável novidade perpétua, difícil de investigar, de entender, de explicar e, por este motivo, de noticiar de forma consistente. Esperamos uma troca aparentemente benéfica: a recolha massiva e o tráfico de todo o género de pormenores pessoais garante-nos uma consciência tranquila no usufruto, por exemplo, do download gratuito. Podemos, assim, continuar a demanda e a exigência pela gratuitidade cultural total e “informativa” digital: estamos “todos”, afinal, a “partilhar”. “Não pagamos !”. Todo o género de publicações, de empresas de média ou de publicidade estão a permitir, desta forma, que agências de “segurança” como a NSA – a ponta do iceberg no que se refere à paranóica indústria de espionagem dos Estados Unidos da América – ou os, cada vez mais, totalitários e transnacionais – já agora: contraditoriamente opacos – “gigantes do digital” se desresponsabilizem e não assumam praticamente qualquer “mas” ou posição crítica relativamente à – num “novo” paradigma que se enche, constantemente, de novos slogans – “era da transparência”. Existe, portanto, uma deliberada e apressada tentativa cultural de levar a cabo uma mudança drástica no que se refere à aceitação popular de que vivemos tempos de normalidade comunicacional. Para o efeito – como não podia deixar de ser para bem dos “resultados imediatos” – tem sido utilizada uma espécie de inversão, em termos de argumentação, que tenta, de forma demagógica, recuperar e distorcer ideias e conceitos que remontam a práticas sociais do século XIX – tentando-nos fazer crer que se trata apenas de um regresso – para que nos venhamos a tornar indiferentes à questão. O perigo não se encontra apenas no tráfico generalizado de dados individuais por parte de todo o género de projectos. Existe uma outra questão que se prende com a normalização da prática em sentido “descendente”. Banaliza-se, como uma espécie de contaminação de “cima” para “baixo”, a “espionagem” tentando colocá-la, perversamente, ao nível das populações. Redes sociais como o facebook vão, passo a passo e de forma quase imperceptível, alterando regras, no que respeita a políticas de privacidade, alegando a nossa aceitação prévia através de vagas normas de utilização que, aliás, quase ninguém tem paciência para ler ou tentar perceber. Precisamos, devido a estas razões, de canais de investigação jornalistica que tentem operar de forma mais independente para que se possam formar mais postos de observação. A “cegueira”, felizmente e como era de esperar, não tem sido permanente. Alguns casos bastante isolados no que respeita à comunicação social, que não é proporcional relativamente ao género de informação que costuma circular através das redes sociais, tem conseguido “apanhar” o rumo de alguns acontecimentos e, a medo – o medo de afastar leitores “convertidos” -, ultrapassar os níveis de uma pura propaganda enaltecedora que infestou os últimos anos com promessas de uma única visão sistémica: a de uma evolução positiva, económica e social, contínua. Entramos no terreno de um “novo” “pensamento mágico”.


Movimentos Independentes ( Como na Serra do Gerês)

Um dia, num dos cafés, da cidade de Braga, onde me costumava sentar para ler os jornais e fumar um ou dois cigarros cravados, reparei em duas mesas acastanhadas que se encontravam encostadas. Estavam, como outras dispostas pelo resto da esplanada, completamente encharcadas. Contudo, talvez devido à posição em que me encontrava, fixei-me naquelas. Já não chovia. Mas várias pingas de água escorriam, de forma sincopada, dos dois tampos para o chão em estrado de madeira. Como, também, pelas pernas das quatro cadeiras que as rodeavam. Imaginei, apesar de tudo, uma família que poderia ali estar a conversar. Projectava, com certeza, emoções próprias. Tentando preencher vazios interiores. Ou, embora ofuscado, qualquer coisa de cheio. Senti que, tanto os acentos como os tampos, suspiravam, aflitos, pela falta de corpos. De braços e de cotovelos pousados. Intimidade. Não é raro fixar-me em objectos isolados e rouba-los da multidão. Pormenorizo, criando ficções, como se entrasse para dentro do olho de um furacão. Ignoro o resto. Contamino-os com “poesia”. Paro o tempo. Atribuo-lhes vida própria. Num outro dia reparei num conjunto de folhas outonais – deviam ser umas sete – que se arrastavam pela berma de uma estrada. Pararam, em determinado momento, todas ao mesmo tempo formando um pequeno desenho abstracto. Como se as tivesse fotografado. Olharmos, sem pensar, para eventos isolados pode fazer com que consigamos, de volta, alguma da magia e do mistério que, entretanto, se perderam: num planeta em que a “informação”, ou falta dela devido ao excesso, parece ter de ser, agora, obrigatoriamente veloz; em que a doença da “digitalização total” acelerou o tempo e, por isso, o prazer da descoberta no demorado se eclipsou. Escrevo sobre movimentos como se fossem independentes. Sem qualquer género de preocupação. Mais importante do que isso: que desconhecem o significado de uma moral. Que é, agora e cada vez mais, assustadoramente colectiva. Sabem, no fundo, dançar. E sabe bem, nem que seja por segundos, suspendermos o ruído supostamente “científico” que se tem tornado omnipresente. E, por este motivo, inconsistente. Assemelha-se, mais ou menos, a um passeio pelos trilhos e pelos montes da Serra do Gerês. Que, para mim, passam por montanhas. Os olhos, atribulados pelos estímulos da cidade como pelas quase inúteis postagens das redes sociais podem, desta forma, descansar. O Gerês é-nos alheio. Ri-se de nós: a cada “partilha” de ignorância.


A Importância da Interpretação e do Contexto no Jornalismo Cultural

Uma das capacidades que mais admiro, nos outros, em época de “postagens”: a de se tentar escrever bem. Para que eu próprio possa ousar, experimentando, evoluir. Evitando o texto curto: uma das “doenças” deste século. Trata-se de uma luta cultural e civilizacional. De um problema de contaminação habilitado por uma teimosia constante e habitual: a “eficiência” tecno-económica. Dou como exemplo contrário: a aptidão para se pegar numa só foto, como fez Roland Barthes, e de a conseguir dissecar. Como, aliás, o autor o relatou através do livro “A Câmara Clara” que foi editado no ano de 1980. Não constitui tarefa fácil. Passa-se o mesmo relativamente ao cinema: assistirmos a um filme, em sala – para o sentirmos melhor -, e, depois de o deixarmos cerca de uma semana em “pousio” interior, a “marinar” e a amadurecer, convertê-lo num texto que caiba, ainda , em página inteira. Como continua a fazer, para nos referirmos apenas ao território nacional, o semanário Expresso. O diário Público deixou de os disponibilizar há já algum tempo devido a inúmeros factores – e, aqui, a falta de espaço não é dos menores -. Reduzindo, desta forma, a interpretação e o contexto histórico- cinematográfico a umas magras colunas que, apesar de regularmente bem escritas, têm agora de se fazer valer através de um estilo mais condensado. Tenho pena. Costumava ser um hávido consumidor de artigos jornalisticos que lhe eram relativos. As interpretações sempre me fascinaram. Nisto: o falecido João Bénard da Costa era rei. Escrevia, sobre filmes, como se pintasse uma tela. Davam-lhe espaço para o fazer. E o sentido, a procura de um sentido que Bénard parecia exigir extrair através do uso de uma palavra quase musicada, só poderia ser conduzido dessa forma. Não interessa, para esta crónica, se existem blogues mais ou menos especializados e direccionados para o tema com textos de igual ou de superior qualidade. A imprensa generalista, com os seus suplementos culturais, continua a  representar um outro papel social. Não deveria, por isso, continuar a ser desprezada, como o é actualmente, por constituir uma espécie de aparência, física, real ou imaginária, aos olhos dos cidadãos de poder e de “controle”. Sublinhando: muitas vezes imaginária; a “democracia” igualitarista precisa de “inimigos”. Pura e simplesmente porque, no que respeita à comunicação, quase tudo representa luta, poder e combate cultural. Tentação que, obviamente, não escapa aos inúmeros tweets, blogues e start-ups de cariz informativo – e desinformativo – que são criados diáriamente. A imaginária “sociedade reticular”, neste aspecto, aumentou a competição mas, adicionalmente, o nível de paranóia social relativamente ao que é dito e ao que é escrito pelo outro. A imprensa generalista, nas mãos certas, continua a ser necessária. Apesar de todos os problemas que tem enfrentado em termos económicos e sociais. Para que nos possa continuar a indicar caminhos de reflexão comuns. Continua a constituir um ponto de encontro necessário que une e concentra visões, um pouco mais gerais, da realidade. Impede, um pouco, um género de “autismo” muito contemporâneo: o isolamento social favorecido pela tendência para a “personalização de conteúdos”. Alguns, nesta fase em que quase tudo parece significar “elitismo”, teriam a tentação de apelidar esta posição que defendo como “tendência para o controle”. Existe, contudo, uma outra que vai para além desta generalização: uma ultra- valorização do individualismo em detrimento daquilo que se teima em apelidar, estigmatizando, de “jornalismo tradicional”. Como se este último precisasse de desaparecer em nome dos múltiplos interesses da filosofia concentracionária da oligarquia digital. É jornalismo a tentar ser o que sempre foi: ponto final. Esta posição, bastante radical, tem incentivado, e criado, o empolamento, não apenas do que se convencionou chamar  de “jornalismo- cidadão”, do “narcisismo- cidadão”: em direcção ao selfie, ao império da velocidade, da facilidade e da quantidade. Em última análise e em termos gerais: à falta de qualidade informativa, jornalistica e literária. Interessa dar voz à “maioria” em nome de um precário comércio digital. Contudo: somos, agora, mais prisioneiros das estatísticas. Mais escravos das “citações” para nos tornarmos visiveis em motores de busca. Do número de visitas por página. Para tal acontecer: a “classe média informativa” transmutou-se numa espécie de obstáculo a eliminar. As perguntas que mais interessam, sobre o poder, deixam, por isso, de se fazer com a mesma insistência e pormenor. Muito nos começa a passar ao lado. A análise e a crítica, exigente e profissional, têm sido desvalorizadas por defendermos, actualmente, um ecossistema económico- digital “infestado” por “comentários”, “comentadores” e todo um conjunto de ansiosos por veículos publicitários como são as conferências TED Talk. Tentando-se degradar, para que tal seja possível, o que aparenta vir de “cima”. Mudanças sociais que se tornam insuficientes para uma conveniente – ou inconveniente – compreensão histórica, artística, literária, jornalistica, musical e cinematográfica. No que se refere a esta última área, navegamos, hoje em dia, sofregamente por sítios infestados de cartazes com filmes principalmente americanos: os de terror, as comédias românticas e os filmes de acção. O trio “paralítico” habitual que, grande parte das vezes, é-nos oferecido como se fosse uma espécie de pronto-a-comer sem qualquer descrição, com qualidade, que nos permita situar a obra de uma forma política, social e, por isso, temporal. Um ciclo vicioso que tem favorecido o parco interesse dado ao argumento e à realização – à autoria e ao nome do realizador – por parte de um género de consumidor, de tipo novo e coleccionista, que, acantonado no seu “nicho”, se tem habituado, progressivamente, a uma procura preguiçosa, pouco informada, fragmentada e desconexa: “vê-se o primeiro que aparecer”. Tanto nas salas que ainda resistem em centros comerciais como nos diversos sítios que proliferam pela internet. É a cara, a pose dos actores e a capa mais “atractiva” aquilo que parece interessar. A história do cinema como, aliás, quase toda a história, parece, actualmente, ser pouco necessária à cultura popular. “Formatar o sistema !”: repete-se, por aí, relativamente a quase tudo o que seja manifestação cultural. Mas a presente “revolução”, mais do que “digital”, é social. Trata-se da construção de um estado semi- amnésico, de pensamento, que se deseja alheio àquilo que lhe é “anterior”. Uma “mudança de paradigma”: um rompimento que, embora seja necessário em determinados aspectos, parece querer evitar, em larga escala e apesar de toda a informação e literatura, dispersa e digitalizada, um significado e o passado. É apenas uma da contradicções do presente. Continuamos, por estas e cada vez mais, a precisar de jornais. As assinaturas nunca foram tão baratas. Entraram em espírito low- cost.


O Confronto de Bartleby Com o Planeta Terra

“Já tudo foi escrito”: afirmou Bartleby. Essa espécie de homem que não pára de andar em circulos, com os dentes semi- cerrados, sem chegar, efectivamente, a lado nenhum. Como se, realmente, o desejasse. “Tens a certeza?”: contrapôs, entristecido, o Planeta Terra. “Sim ! Repara: muito daquilo que nos foi, e que nos continua a ser essencial foi elaborado, pensado, pintado e escrito – e com todas as cores ! – de uma forma muito mais rica e simbólica a partir da Antiga Grécia. Que vontades dali vieram ! Passámos, entretanto, por uma longa fase negra, embora diversa como em todas as épocas, no que respeita a uma interpretação da “existência” e da “realidade”. Felizmente que muito desse significado, mesmo que encontrado em cacos depois de ter sido marcado na pedra, acabou por ser recuperado. O que favoreceu uma  reabertura e, por isto, uma recriação. Desde a época do Renascentismo, com altos e baixos e através de inevitáveis ciclos, não parámos de, em certo sentido, evoluir. Repara, como exemplo, em toda a tecnologia que conseguimos desenvolver e que estamos, presentemente, a produzir. Mas olha, principalmente, para tudo o que se escreveu, ou se pintou, com a passagem dos séculos. Olhemos, também, para a complexidade. Que se teima agora em perder, em reduzir e em recusar. Que percorreu, por exemplo, o fascinante vulcão de ideias, de sementes e de uma verdadeira “inovação” que construiu todo o século XX. Chegamos a um momento em que, nos domínios das artes e da literatura, pouco parece ser ultrapassável. Acrescentamos, quase unicamente, “estatísticas”. Há quem o defenda e quem o advogue: alguns pretendem, através da retórica, acabar com tudo isso. Será necessário? Em nome de quê e em nome de quem? Com tanta liberdade e andamo-nos a castrar. O quê?? É que, neste momento, recomeçamos a simplificar. Escrevendo, como se costuma dizer, por exemplo, para os lados de Inglaterra, com uma forma cada vez mais “limpida e cristalina”. Dizemos “adeus” às metáforas: a tudo o que foi – e que poderia voltar a ser – realmente individual, emocional e profundo. Abraçamos, outra vez, a superfície moral: “as biologias !”; “as neuro- ciências !”. Ao ponto de já existirem alguns robôs a “escrever”, a “decidir”, a “criar” por nós. Existirá algo mais “simples”? Tudo se deseja compreensível: “directo”, “eficaz”, “objectivo”. “Nada que tenha a ver com a natureza humana: fujamos dela !”. E, realmente por tudo isto, a “realidade” torna-se menos explicável. Estamos, novamente, em terrenos do triunfo da “matemática”, da computação, de um “cérebro” sem corpo. Já tudo foi escrito. E, no entanto, nunca existiu tanta “leitura”, nunca se viram tantos “livros” e nunca houve, a circular, tanta “informação”: “dados”, “factos” e “estatísticas”. Numa ausência de mundo, de plantas carnívoras e adocicadas, de música e planetas interiores. Nada de inteiramente novo se faz. Autores contemporâneos, também em nome do mercado, não querem ser contaminados. Têm “medo” de ler determinadas obras porque as consideram “ultrapassadas” – que, muitas vezes, não o estão: apenas para o necessário espírito do tempo que corre; que quer correr -, “antigas” e “tradicionais”. Esta vontade de velocidade: fugindo de quê? Esquecendo o quê? Deixam de as entender. E suspeito que não desejam voltar a compreender. Seria tudo demasiado…”.”Complexo, Bartleby ? Chegaste a um ponto fundamental”: retorquiu, desiludido, o Planeta Terra com este outrora grande homem que, para ter amigos, se transformou em homensinho. “Tens ficado com um problema de memória. Anuncias por aí que queres “formatar o sistema”. “Fazer a revolução! “. Dizendo, enquanto andas em circulos e de mãos atrás das costas, que já tudo foi escrito. Existe, contudo, um pormenor importante que também tens “esquecido”. “Qual?”: inquiriu, Bartleby, visivelmente  irritado e desafiador. “Repetes e repetes que já tudo foi escrito. Mas, de certa forma, o único grande problema é teres ficado com as costas demasiado pesadas e, por isso, demasiado quebradas. A questão é que existe algo, para lá do “conhecimento”, que é igualmente importante”. Barleby não tinha a certeza se desejava saber a resposta. Talvez as dúvidas e, ao mesmo tempo, tantas certezas lhe dessem algum jeito para, lá no fundo, não resolver problema nenhum. Talvez gostasse de ter ficado com as costas pesadas. Mas, a medo, avançou: “o quê?”. Planeta Terra: ” Corta a corda, Bartleby ! Olha para lá do “conhecimento”. Utiliza a imaginação. Achas que já tudo foi escrito. Contudo: nem tudo foi inscrito !


A Nossa Ilusão (Um Problema de Tradução)

Assistimos, no momento presente, a um problema de “tradução” que considero ser, tendencialmente, mais ou menos geral: muita gente a “esbracejar” dentro e fora de redes sociais. Mais do que do livro, do artigo de opinião, do “conhecimento” ou da “informação”: podemos baptizá-la, num contexto que é favorável a todo o tipo de catalogações apressadas, de “Sociedade do Comentário”. Há não muito tempo atrás, para dar um exemplo que me parece ser essencial, um tradutor de uma obra específica não teria de conhecer, unicamente, um determinado idioma na perfeição. Ele era “obrigado” a dominar o campo de estudo, a conhecer a fundo o autor a traduzir, ser mais ou menos especialista – no que isto tem de “tradicional”, “antigo” e, portanto, pormenorizado – em filologia para conseguir determinar o contexto temporal e, por isso, moral em que determinada obra, palavra ou expressão teria sido escrita. Se fosse caso disso. O que, em certa medida, “acabou”. É um género de gente que, hoje em dia, serve para “abater”: eles “pretendem” dar cabo da “democracia”: é que, agora, qualquer editora ou start- up pode, gratuitamente ou por “cinco tostões”, contratar um “chacal” que vagueie pela “China”. Isto passa-se em grande parte dos sectores comerciais: “É a crise!”. Favorece-se, para a combater, portanto: mais crise. Não admira que pouca gente se ande verdadeiramente a compreender por mais que tente “comentar” ou escrever: o “problema de tradução” – entendido aqui como “interpretação”: apenas para que na “era da transparência” e da “repulsa” pela metáfora, não sejamos tão “opacos” – tem sido contaminante. Estamos infestados de “roedores” por todos os cantos. Alguém perguntaria: “E os psicólogos? Escapam?”. Alguns – ” mas só alguns” – já conseguiram entrar no século XXI. Não é que esbracejem, como todos nós, mas, por vezes, também preferem não ouvir: o que vai dar mais ou menos ao mesmo. A cada um deles o seu livro, a sua história, a sua escola ou a sua visão. Portanto: o seu autismo. A nossa ilusão.


A Perigosidade da Escrita

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Não é raro termos que ter bastante cuidado com aquilo que “resolvemos” escrever. Após e quando o estamos a fazer. Ainda mais do que ler – e, na fase actual, com toda a desinformação que circula velozmente – : precisamos de utilizar, não uma nem duas, mas, pelo menos, três luvas para não nos ferirmos. A escrita pode ser uma seta apontada contra nós mesmos. Principalmente quando temos a “lata” de sermos “poéticos” num mundo que se tornou pretensamente “científico”. Nunca sabemos, com uma palavra, que pedregulho estaremos, inconscientemente – no seu significado infantil e não freudiano -, a tentar levantar. Que mistério estaremos a destruir. Que inflamação estaremos a activar. Há expressões – que parecem ter vontade própria – que são utilizadas para esconder: contra aquela inocência que pretende que todas servem “para comunicar”. A minha experiência mostra-me que, por trás de cada uma – por “mesquinho” que isto possa parecer, interessa, aqui, o pormenor -, pode estar, à espreita, um “monstro” a ofegar. Quem costuma escrever sabe que, para além do prazer de o fazer, existe uma dificuldade, um medo, um “terror”: o que virá a seguir ? É exactamente isso que nos faz, por um momento, parar. Evitar um artigo. Deixar um livro por acabar. Quando há qualquer coisa que começa a espreitar: pomo-nos, rapidamente, a tapar. Evitando, deste modo, aquelas linhas. Julgo que, normalmente, “as piores”. Ou afinal: por serem exactamente as melhores? Um texto, assim como a dor, poderia ser “melhorado” indefinidamente. Contudo: “duas” revisões, por uma questão de cautela, bastam !


O Delírio de Bartleby

“Já tudo foi escrito”. Já tudo foi escrito? “Sim. É o que dizem professores de literatura, críticos e historiadores. Que já tudo foi escrito”. Realmente, na “sociedade da estatística”, não é a literatura que mais tem interessado. Mas talvez não te devas preocupar muito com os fantasmas do passado que carregas às costas. “Quais fantasmas?”. Bartleby…continuamente a desejares ultrapassar? Fazes, com isso, dois maus serviços: o primeiro a ti próprio. O segundo aos excelentes autores que não merecem a tua mediania. Contenta-te com o que tens e deixa os outros respirar. Ou preferes deixar de ler os grandes mestres para que te possam ouvir a ti? Isso está na moda. Talvez o que esteja mais na moda. Aceita que não és assim tão bom. És bom. Mas talvez não como desejarias. Tenta escrever a seguir. Existe sempre uma originalidade que podes adquirir na mistura entre o que és e tudo que leste até agora. Fundarás, com isso, uma escola pessoal. Nunca conseguirás ler todos os livros que existem e que foram escritos até agora. Isso quase em nenhuma época foi possivel e é tarefa cada vez mais complicada. De certa forma: a humanidade tem de recomeçar continuamente devido a uma certa “falta de capacidade”. “Dizem que um dia teremos os cérebros todos ligados e assim poderemos processar toda a informação”. Informação…informação. A obssessão pelo momento. O que falta é comunicação. Escreve. E deixa lá as múltiplas teorias contraditórias da tecno- ciência. Muitas delas são delírios iguais a quaisquer outros. Tu, depois de leres o jornal diário, ficas mal disposto com o que se passa entre Gaza e Israel e estás á espera que um ser humano não caia para o lado depois de uma conecção com outros cérebros? Dizes que não acreditas em histórias da carochinha: a verdade é que arranjaste uma nova. Ponto final.


O “Selfie”: Do Reino do “Eu” ao Império do Nada ( Versão para o Jornal i)

Publicações e debates, sobre a “sociedade da informação”, “atrasaram-se” em investigação. Apesar da melhoria no último ano, devido ao caso Snowden , a “discussão” foi conduzida como uma “veneração”. Imperava o “guru da comunicação”: o “optimismo” sobre um paradigma “paradisíaco” que a tecnologia, por si, alcançaria. Parecia, por vezes, uma “seita” em construção. O “panfleto” era quase sempre o mesmo: “o mercado dos gadgets conduz- nos a uma democratização da mensagem”. Mantra que foi emulado, nas redes sociais, por um usuário mais absorvido por questões económicas nacionais. Compreende-se. Mas inúmeros factores, ignorados pelo cidadão na veloz troca de informação, estão a remodelar o estilo de vida com uma rapidez difícil de descortinar pelos média, pela filosofia ou pela sociologia contemporânea. Existem exemplos. Como os livros de Nicholas Carr ou de Evgeny Morozov. Mas é pouco. Nada disto é novo: o século XIX, com a revolução industrial, assistiu a crença similar. Que se desvaneceu quando se viram as consequências que a tecnologia também trouxe: poluição, duas guerras mundiais ou as bombas de Hiroshima e Nagasaki. O determinismo científico esquece, facilmente, que o homem não é só Sapiens: é Demens. A “democracia digital”, possibilitadora da difusão da mensagem por parte dos cidadãos, é real. Mas a questão não pode ser colocada, apenas, desta forma. Se se pretende, apenas, a inclusão: pouco é questionado subjectivamente. Porque, contra a narrativa do mercado tecnológico, opiniões divergentes são olhadas de soslaio. E “se pouco é questionado” relativamente ao paradigma comunicacional: não estamos numa democracia social. Mas num igualitarismo de tipo novo: transnacional. Questões que podem ser colocadas não são novas. Foram “esquecidas” neste século. Mas debatidas em obras de filosofia no século XX. O Estaleiro Cultural Velha- a- Branca, de Braga, com um debate conduzido por Inês Viseu, Hugo Moura e Daniel Camacho no passado dia dois de Maio, evitou o que referi anteriormente. Abordou a história da fotografia para questionar a banalização da cultura da imagem no discurso colectivo e a tendência do momento: o selfie. “Pormenor” que se transcende ao atravessar o espectro informativo: o rápido post “noticioso”, o vídeo de “cinco minutos” para que tenha “mais visualizações” ou a “adolescência” de muito do “jornalismo- cidadão”. Interessa a rápida exposição: o “eu” é a mensagem. O que arrasta consequências ao nível do pensamento contemporâneo. “Se toda a mensagem vale o mesmo”: que caminho seguir num cenário de crise económica e social? Precisamos de interpretação. Nada disto traria problemas se não ofuscasse a especialização e a qualidade que a costuma acompanhar. O que passa a “interessar” não é, exactamente, a “cultura”. Mas a inclusão de “toda a gente” no discurso cultural. Mas talvez seja cedo. Existem épocas de retracção. Nada é certo. Nada é eterno. Precisamos, por vezes, de parar: assistir sem “fotografar”. Pensar. “Fotografar” a seguir.


O “Selfie”: Do Reino do “Eu” ao Império do Nada

Uma grande parte dos jornais, das publicações que não são académicas – e estas são cada vez menos -, dos sítios na internet e dos debates internacionais, no que respeita à perpétua discussão que é feita, há anos, sobre a construção da desejada “sociedade do conhecimento” e da “sociedade da informação”, “atrasaram-se”, a meu ver, em termos de um trabalho analitico e de investigação. Ou seja: evitaram uma necessária “dissecação”. Apesar de uma melhoria no último ano, devido ao caso das escutas denunciado por Edward Snowden , no que se refere a uma maior quantidade e qualidade de artigos publicados em sítios mais ou menos especializados: o debate continua, tendencialmente, a ser conduzido – e, por isso, reduzido – tendo em vista uma espécie de “veneração” que parece ser indispensável ao espírito económico e ideológico do tempo. Mas abundavam, exceptuando crónicas de autores “isolados”, apenas o fervor, o “optimismo”, a publicidade mascarada e, principalmente, as press- releases sobre um suposto novo paradigma em direcção a um qualquer paraíso que a tecnologia, por si só, iria pelos vistos alcançar. Imperava, essencialmente, o discurso de “mercado”, do “guru” da comunicação a pedir atenção mediática ou 20 minutos num dos palcos da TED Talk: o actual vendedor de ilusões. Estava quase sempre ausente o contra- ponto visionado ou textualmente publicado. O que, não raras vezes, transmitia o aspecto de que existiria uma nova “seita” em formação com toda uma “longa cauda” de seguidores, clones e repetidores. O panfleto era, quase unicamente, o mesmo: “a proliferação do mercado dos gadgets electrónicos conduz- nos a uma democratização da mensagem: fotográfica, jornalística, cinematográfica ou literária”. Mantra que, após ter sido insistentemente propagandeado por todo o tipo de representantes de empresas da área da tecnologia digital e dos blogues que lhes estão directamente ou ideologicamente associados, é agora emulado, a julgar pela “informação” que é partilhada diáriamente através das redes sociais por um consumidor intencionalmente, ou não, desatento mas principalmente absorvido por questões económicas e nacionais. Compreende-se. Mas inúmeros aspectos importantes, sobre as estruturas e tendências digitais, são constantemente ignorados pelo cidadão “comum” na sua veloz troca de informação, de cartazes feitos no Photoshop com provérbios descontextualizados ou dezenas de fotografias de recém- nascidos. O problema é que são matérias que não versam pontos exclusivamente “digitais”. São complexas, essencialmente sociais e estão a remodelar o nosso estilo de vida a uma velocidade difícil de descortinar por todos nós, por uma comunicação social desatenta por se encontrar em constante competição, pela filosofia ou pela sociologia contemporânea. O que se reflecte numa rara produção crítica quando sobre eles resolvem “avançar”. Os exemplos, de qualquer forma, existem. Como as obras “Experimentum Humanum” de Hermínio Martins, “Crise no Castelo da Cultura” de Moisés de Lemos Martins, “Os Superficiais” de Nicholas Carr ou o incansável trabalho de Evgeny Morozov através de conferências ou da publicação de livros como “The Net Delusion” e “To Save Everything, Click Here”. Mas, dada a enorme torrente de questões que os nossos dias anunciam, é muito pouco.

Nada disto é inteiramente novo. O século XIX, com a revolução industrial a decorrer, a invenção do comboio eléctrico, o telefone ou o telégrafo, assistiu a um género similar de “efervescência”, de crença utópica no “futuro” e na “conectividade” entre os homens. O que só os iria aproximar. Contudo: a miragem foi rapidamente posta no lugar que lhe competia quando se verificaram muitas das consequências que a tecnologia também trouxe ao século XX: uma poluição ambiental cujo máximo estamos neste momento a presenciar, duas guerras mundiais, as bombas atómicas de Hiroshima e Nagasaki e vários tipos de genocídios que não pararam de ocorrer até aos dias de hoje. O determinismo científico esquece, muito facilmente, que o ser humano não é só Sapiens. Também é Demens: muito pouco controlável.

De qualquer forma: a “democracia digital”, enquanto possibilitadora de uma difusão, exposição e publicação de uma mensagem que era anteriormente inacessível à maior parte dos cidadãos, não deixa de ser verdadeira. Mas colocadas as questões, simplesmente, desta forma: o assunto parece ficar arrumado. Devido, essencialmente, a um aspecto delicado. Se o que se pretende é, principalmente, a inclusão e a “democratização”: pouco, a partir daqui, poderá ser questionado a um nível subjectivo. Porque, contra a “ditadura” da narrativa redutora do mercado tecnológico digital e da maioria consumidora que lhe está associada, a dissidência e as opiniões divergentes são olhadas de soslaio. Não são censuradas nem são proíbidas. São apenas ignoradas. E “se pouco pode ser questionado” devido a uma quase “invisibilidade” da pergunta incómoda relativamente ao frenético paradigma comunicacional do momento: não é propriamente uma democracia social real, relativamente às questões aqui apresentadas e por muitas “partilhas” que façamos, aquilo que estamos a atingir. Mas, pelo contrário, um igualitarismo e uma massificação de tipo novo. Por ser transnacional. Que engloba, conectando-as, cada vez mais franjas populacionais. Calando-as. Levando-as, devido a uma questão de inclusão, à auto- censura. São movimentos que nascem do standardizado – quase “programado” – discurso ideológico- económico dos “gigantes do digital”. Dos “corredores” filosóficos e políticos de Sillicon Valley. O nosso país, exceptuando casos pontuais, quase não ofereceu, até agora, evolução. Mas, aqui, também relativamente aos meios de comunicação social. A maior parte das publicações continua a ignorar uma série de questões que são, cada vez mais, debatidas “lá fora”. Que não constituem problemas de “futuro” porque o império único da propaganda faz parte do passado. Por outro lado: as perguntas que, a partir de agora, poderiam e podem ser formuladas não são inteiramente novas. Foram, apenas, temporariamente e convenientemente esquecidas neste princípio de século. Muitas delas foram debatidas em obras de filosofia da ciência e da tecnologia no século XX. Precisamos, por isso, de um novo espírito de inovação que faça frente ao conceito de “inovação” simplista de Sillicon Valley. Para que haja, outra vez, menos certezas absolutas, menos vontade de determinismo. Mais dialéctica. Mais História. Para uma nova e urgente integração.

“Integração” que foi atingida no que relato a seguir: O Clube de Fotografia do Estaleiro Cultural Velha- a- Branca na cidade de Braga, através de um debate que teve lugar no passado dia dois de Maio e que foi conduzido por Inês Viseu, Hugo Moura e Daniel Camacho, teve a capacidade de inverter a situação e escapar, de forma brilhante, ao que referi em todas as linhas anteriores. Ali: existiram perguntas a serem colocadas e um público jovem que estava, contra todas as generalizações geracionais, aberto ao que estava a ser dito. O encontro começou por versar, resumidamente, o significado histórico e o propósito da fotografia para, aproveitando o “gancho”, questionar o seu estado na sociedade actual: da cultura da imagem à sua entronização no discurso colectivo e, daqui, em direcção à multiplicação, à consequente banalização e, então, a uma das tendências mundiais do momento que é, talvez, o seu ponto mais baixo: o selfie.

Contudo: a discussão acerca do “pormenor” fotográfico transcende-o. Serve de ponto de referência e de espelho a uma máquina mutacional muito maior que atravessa todo o espectro informativo e cultural global: o selfie assume múltiplas formas, mais ou menos encapotadas à primeira vista e encontrando- se, neste momento, em quase todo o lado: no rápido post “noticioso”, no vídeo ou “conteúdo”, de “cinco minutos”, colocado em plataformas como o You Tube para que “possa ter um maior número de visualizações” ou na impulsiva adolescência de muito do que se resolveu apelidar de “jornalismo- cidadão”. Interessa, portanto, a rápida exposição.  De preferência: sem esforço. O “eu” passou a ser a mensagem. O que se poderia dizer passa a segundo plano. Mas ele encontra-se também em fenómenos de audiência televisiva como as inesgotáveis e múltiplas variantes de reality shows ou na proliferação de revistas “cor de rosa” que, na última década, ultrapassaram uma linha vermelha através de uma contínua exploração emocional de “vedetas” onde já não se consegue distinguir o que é realidade do que é telenovela, o que é aproveitamento do que é voluntarismo do actor “para que possa atingir um “valor de mercado”. O que arrasta, inevitavelmente, consequências sociais ao nível político e do pensamento contemporâneo. “Se toda a mensagem passou a valer – e a vender – o mesmo”: que caminho seguir, em termos civilizacionais, num cenário de crise económica e financeira? Já o escrevi anteriormente: precisamos de focos de luz. Precisamos de interpretação. Necessitamos de contexto. Onde se encontrem perguntas que interessam.

A inclusão cada vez maior das “margens” – como sinónimo das camadas de uma população que antes do advento da internet não tinha acesso à exposição mediática – não traria problemas se tal não originasse a ofuscasse a especialização e uma certa qualidade superior que a costuma acompanhar. A duração, a originalidade, a dificuldade e a qualidade são preteridas em favor de um “mercado” rápido e precário numa progressão galopante em direcção a uma espécie de ultra- simplificação do discurso. O que passa a “interessar”, em primeiro lugar, não é, exactamente, a “cultura” e o “conhecimento”. Mas a inclusão de “toda a gente” no discurso cultural. O que esbate e relativiza, em sentido negativo, a importância e a visibilidade do questionamento.

Contudo: talvez seja cedo. Talvez as ilusões se desmoronem à mesma velocidade com que se criou a utopia ou com a rapidez com que vão à falência as empresas da área do digital. A história, como foi aliás salientado no debate anteriormente mencionado, prova-nos que existem sempre movimentos de retracção. Nada é certo e nada é eterno. Mas para que a história nos mostre isso: precisamos de estar atentos. Para tal acontecer: precisamos, de vez em quando, de pousar o smartphone. Pensar. Assistir sem “fotografar”. Pensar. Para “fotografar” a seguir.


A Digitalização da Moral Sexual

Há qualquer coisa “no ar” a fazer-nos sentir que, apesar de todo o avanço tecno- científico actual – ou, pelo menos, de uma sobre- publicitação do mesmo em nome do “obrigatório” “estudo”, do apressado artigo académico ou das “citações”, em inglês, nas revistas ou plataformas da especialidade – existe algo que, em termos sociais, se retrai. O ser humano, por muito que deseje o contrário, não é, ainda, um gadget que possa ser actualizado, renovado e apresentado em cima de um palco todos os anos. Pelo contrário: sai-lhe a “casca”. É o verniz a estalar em tempos de crise económica e finaceira. E tudo aquilo que aparentava “liberdade” ou “democracia social” entra, vagarosamente e mais uma vez, em processo de erosão. Em termos civilizacionais, como sempre, nada está garantido. Ou melhor dito – para nos adaptarmos ao léxico computacional corrente -: programado. A “cultura” não nos foi oferecida de bandeja. É uma esforçada construção de milénios, com avanços e retracções, não raras vezes com erupções repentinas e transformações radicais quando menos as esperamos. Como o regresso de indesejáveis arcaismos morais.

Basta uma vista de olhos pelas páginas dos jornais: regressa o nacionalismo, o racismo, tentativas de anexação de territórios como também o discurso castrador sobre as minorias e as facções da população mais fragilizadas. É a “austeridade” social a seguir a económica. Movimentos que têm origem, ou reflexo, em representantes políticos – responsáveis embora também eternos bodes expiatórios – mas que, adicionalmente, englobam toda uma “sedimentação” e uma vontade populacional bastante mais vasta. Que acabam por  abarcar o tipo de instituições que actualmente são louvadas e erigidas como que constituindo alternativas em direcção a um mundo mais justo e igualitário. Não me vou focar, por agora, em questões económicas. Já o tenho feito insistentemente nos últimos cinco anos. Seguirei, desta vez, por um outro caminho: a questão da moral sexual e as formas que pode adoptar, através de alguns exemplos que considero significativos, neste início do século XXI. Existem, nas empresas que são habitualmente denominadas como “gigantes do digital”, particularidades que nos trazem à memória qualquer coisa semelhante à de uma nova castidade. Com todo um renovado conjunto de directrizes e “proibições”. O “dedo” está apontado. O discurso dominante gira, habitualmente, em torno da liberdade de expressão. Mas um olhar um pouco mais aprofundado revela-nos, aqui e ali, uma realidade ligeiramente diferente. Não se trata, unicamente, de uma questão terminológica: a “nuvem” – a cloud – é onde depositamos as nossas aspirações de “salvação” cultural. Para o pôr mais ás claras: gratuitidade cultural. “De mãos dadas”: “adorámos” Steve Jobs, co- fundador da Apple Inc., assim como Tim Cook, o “clone” escolhido que lhe seguiu. Detentor de semelhanças fisicas quase perturbantes. Depositamos “esperanças” na monopolista distribuição literária por parte de Jeff Bezos que idealizou a Amazon. E esperamos poder comentar livremente a realidade através da criação de Mark Zuckerberg: a rede social – ou como diria Eduardo Cintra Torres: rede social anti- social – facebook. Contudo:

Sabemos que a Apple censurou no ano de 2012, através da loja ITunes, um e- book de Naomi Wolf intitulado “Vagina – uma nova biografia”. Que, segundo o sítio da Globo, “trata da própria, mais especificamente dos motivos que fazem o orgão genital feminino ser ainda hoje citado de maneira “um pouco envergonhada””. A ironia relativa à citação: a expressão foi substituída por “v****a”. Não é caso único: o mesmo aconteceu a “Os monólogos da vagina” de Eve Ensler. Como a um episódio da série “Girls”: “Vagina Panic”. Do “outro” lado: a palavra “pénis” teve destino semelhante relativamente ao livro “The Penis Thieves” de Frank Bures. A empresa já tinha feito o mesmo, no ano de 2010, no que respeita à lista de livros mais vendidos da Ibookstore: dois contos eróticos de Carl East – “Blond and Wet, The Complet Story” e “Big Sis” – que ocupavam, respectivamente, a primeira e a segunda posição. E um de Ginger Starr – “Six Sexy Stories” – que ocupava o quinto lugar da tabela. Existem bastantes mais exemplos. Que incluem revistas famosas, bandas desenhadas e cartoons.

A ultra- multinacional Amazon não fica atrás: a empresa, no ano de 2012, cancelou o contrato que tinha com a Digital Manga Publishing. Alegadamente porque a banda desenhada que distribui continha “conteúdos impróprios”. O problema foi a edição de um yaoi, uma espécie de romance homossexual masculino, pelo facto de entrar em conflito com as directrizes da empresa. Nomeadamente: a proibição de “imagens gráficas de pornografia e material pesado”. Os conteúdos continuaram à venda , apesar de tudo, através de outras lojas de distribuição digital. A questão é que a Amazon não faz uma distinção clara e objectiva entre pornografia e erotismo. E a censura, por outro lado, não se estendou a conteúdos de género heterossexual. A empresa defendeu-se dizendo que se tratara de uma “falha na catalogação dos livros”. Que ficaram, mais tarde, novamente acessíveis mas difíceis de serem encontrados. O mesmo aconteceu relativamente a outro tema: o incesto. Segundo um artigo de Isabel Coutinho disponibilizado pelo jornal diário Público e intitulado “Amazon censura livros sobre incesto”: a empresa retirou livros, sem avisar, que o mencionavam dos leitores electrónicos das pessoas que já os tinham comprado. Como nota, bastante significativa, de “curiosidade”: a Amazon Publishing acaba de criar uma nova divisão, dedicada à ficção e à não- ficção, intitulada Waterfall Press. O objectivo será o de vender livros com temática cristã.

A rede social facebook, conhecida por fazer constantes alterações sem qualquer tipo de pré- aviso, costuma, periodicamente, censurar conteúdos como se um qualquer algoritmo comandasse as operações. O discernimento, de facto, não costuma ser grande quando a nudez é identificada. O que leva à exclusão de obras de arte – que podem incluir a escultura, a pintura, o cinema ou a fotografia – de diferentes regiões e épocas da história humana. De vídeos em que sejam mostrados os orgãos genitais dos membros de diversas etnias que não costumam partilhar os hábitos ocidentais no que respeita a moral ou a vestuário. Ou de fotografias em que está presente a amamentação materna. A moralização falha, contudo e por exemplo, quando esteve em causa a postagem de um vídeo que mostra uma mulher a ser decapitada por parte de um grupo organizado ligado ao narco- tráfico mexicano.

Qualquer empresa privada, de qualquer forma, tem o direito de definir regras de postagem ou de publicação. Contudo: está em causa a concentração de actividades que estavam anteriormente mais dispersas e por esta razão, mais livres. O comércio tradicional livreiro não sobrevive face às constantes investidas de empresas supra- nacionais como a Amazon. E espaços de distribuição informativa, como o facebook, há muito tempo que deixaram de constituir passatempos marginais. Constituem novos “estados” aos quais é quase impossível escapar por razões de ordem publicitária ou laboral. O networking faz parte do dia a dia de milhões de cidadãos a nível internacional. Constituem hobbies standardizadores e massificadores que orientam o discurso planetário e que promovem, não raras vezes, a auto- censura a nível consciente ou inconsciente. O comércio tradicional, nisto, deixava, pelo menos, “respirar”. Contudo: o foco teima em não se reorientar. Os novos alvos são, ainda, demasiadamente perdoados. Quando, no fundo, constituem, actualmente, uma chave e uma das peças principais.

O jornalismo contemporâneo, apesar de progressivamente mais atento, não precisa de deixar de escrutinar aquilo que se denomina como “tradicional”: o que, ainda, aparenta ser exterior ao tentáculo das estruturas digitais. Mas à medida que a tecnologia se desenvolve e a separação se torna progressivamente mais difusa ou mesmo inexistente: precisa de começar a interpretar um planeta que será, a partir de agora, cada vez mais complexo, dificil de noticiar e de descodificar. Explicações que não se conseguem com posts nem “infográficos”. Se assim o desejar: terá muita investigação a fazer e trabalho de qualidade a realizar.